Há livros assim….
Texto de António Souto, poeta e professor, sobre «Arestas» (ed. On y va), de Sílvia M. Vasconcelos; suporte da intervenção em Lisboa na apresentação da segunda Edição do livro (Escola Secundária de Camões – MUESC), a 18 de Outubro de 2024
Arestas é um livro com 44 composições que a autora distribuiu por quatro secções ou, se quisermos, por quatro ‘lugares’, sugestivamente intitulados: Arestas da ilha e do mar, 1ª Parte (13 poemas); Arca de Noé, 2ª Parte (8 poemas); Poeta, 3ª Parte (5 poemas); e Amor em queda livre, 4ª Parte (18 poemas).
‘Lugares’ porque há, da ilha ao amor, da geografia ao coração, um contínuo diálogo, nem sempre pacífico, que encontra no sujeito poético um mediador capaz de fazer pontes entre o real e o onírico – como se intui dos versos «Ser poeta é cheirar a maresia./ Mesmo longe do mar.»
Arestas, como se verá, é isto, e um modo ainda de dizer em versos toda uma poesia que anda a par com a vida, que traduz estados de alma, na sua intrínseca subjetividade, mas que abraça uma «paixão» e uma «vaidade» que a autora confessa algures: «Paixão pelos animais, vaidade por ser médica veterinária». Sentimentos maiores que alastram ‘naturalmente’ para o orgulho de uma pertença insular (a Madeira) e para a embriaguez «nas vinhas das palavras» (III, p. 41).
«Divagações líricas», de certa maneira – na designação feliz de Luiz Fagundes Duarte relativamente às suas últimas crónicas antologiadas –, divagações líricas, dizíamos, que se encontram plasmadas, direta e indiretamente, nesta obra.
Mas porque aludimos a este autor açoriano, gostaríamos de citar, a propósito, a breve nota introdutória que ele faz à edição do seu livro de crónicas As Fogueiras do Mar (publicado em 2022 pela Companhia das Ilhas):
Trago em mim uma ilha por encontrar. Sei que ela existe, as correntes do mar falam-me dela – e dela me falam as aves que precisam de onde pousar. Ouço as ondas que rebentam em tormentas de basalto. Sinto no ar a humidade que só uma ilha pode atrair. Escuto vozes de pessoas que por séculos e séculos demandaram horizontes e acharam portos de abrigo. E há tremores convulsos que me dizem que o solo que habito é uma epifania da Terra.
Dentro de mim.
Ora bem, é impossível ler Arestas sem toparmos com a ilha, agora com esta Ilha, a da autora, e seus lugares, como o «caos bíblico» da Fajã da Rocha de Baixo (I, p. 11), ou a espécie de Adamastor da Penha d’Águia (p. 18) ou o promontório da Ponta do Pargo, «onde morre a saudade» (IX, p. 19), ou ainda o «Lugar eternal» do Caniçal com as suas «escarpas de fogo» (XXI, p. 21), lugares, contudo, encantatórios, míticos e místicos, que, inscritos numa representação de ‘ínsula divina’, se namoram e enamoram pelo feitiço de Tétis e pela «grandeza da ilha» (VIII, p. 18). Lugares que, em última instância, dão lugar a confidências e a tímidos erotismos (XIII, p. 23).
Lugares, também, que são palco de uma luta incessante entre estes dois elementos, a Terra e a Água, isto é, a ilha e o mar: uma terra a um só tempo de luto, quando encoberta (II, p. 12), e de cumplicidade poética (XI, p. 21) – uma terra «sumidouro» (I, p. 11); um mar a um só tempo ferido (III, p. 13) e revigorante – um mar «que não cabe num poema» (VII, p. 34).
Lugares de conformismo e de esperança, de dor e de sonho. Lugares-ilhas que nos habitam como, tornando uma vez mais a Luiz Fagundes Duarte, «pontos de chegada ou portos de partida, celas de prisões ou portas de liberdade». Sabendo-se, como bem sabe o poeta, neste caso a poetisa/ poeta, que «o lugar não existe./ Existe antes a tormenta de não o saber encontrar» (V, p. 15).
Uma busca reiteradamente disfórica entre o apelo do ‘fazer-se ao mar’, na sede de partir (V, p. 15), em resposta a um chamamento «do outro lado das fragas», e a desistência dorida desse devaneio, só porque os sonhos «morrem,/ antes de romper» (VII, p. 17). Só porque «Um poeta», como se escreve logo no poema inicial, «nunca chega a partir» (I, p. 11).
Entretanto, se a ‘ilha’ e o ‘mar’ constituem o impulso do livro, não deixarão nunca de abraçar os outros ‘lugares’ da obra.
No ‘lugar’ da Arca de Noé (2ª Parte), assume-se por inteiro a já referida paixão da autora pelos animais. Com remissão para o Antigo Testamento e para a história bíblica do Dilúvio, o sujeito poético, observador atento, transporta-nos para cenários de ilhas lendárias, com mar em redor, para em simbioses delicadas e personificadas revelar a «tristura do olhar» de um «cão envelhecido pelo destino» (I, pp. 27-28), ou o olhar “demudado/ em incandescências de afecto” de uma gata (II, p. 29), ou o «aconchego» amigo de um cão e uma gata (III, p. 30), ou um cão que «tinha um poeta» e que se encontravam «sobre os escombros de um passado que os reuniu» (IV, p. 31), ou, enfim, outras «verdades» (V, p. 32) de um poeta «metade gato, metade cão» (VIII, p. 35). Versos que, como no poema VI (p. 33), nos enternecem e nos lembram o romanceiro popular: «Avistou uma garça que fugia apressada no fulgor do céu:/ – Viste uma gata, pequena e fulgente,/ devastada por enganos no releixo da vida?/ – Via-a relampejar de medo na berma de um lago.»
E depois há o ‘lugar’ do Poeta (3ª Parte), do poeta embevecido pelo mar, onde cabem «todos os lugares» (I, p. 39), e que nele se deixa perder num fascínio de infância. O lugar-memória de ausências e de solfejos tristes em tons de basalto (II, p. 40, dedicado a JAB [José Agostinho Baptista]); o lugar-refúgio de solidão e quimeras, ou o lugar-fado de onde, no lançar dos «búzios sobre a mesa», se vaticina o porvir ‘aprisionado’ (IV, pp. 43-44).
Por último, há também o ‘lugar’ do Amor em queda livre (4ª Parte), ‘lugar’ onde habita o tempo (vocábulo presente em quase todos os poemas desta secção) – o tempo que se esvai e solta lembranças (VII, p. 55), o tempo-prisão, o tempo «solidário com a rendição dos amantes», o tempo estilhaçado, o tempo-saudade, ou o tempo-desilusão que, «Num último sopro» renuncia o próprio amor: – «Que nunca mais se diga amor!» (XIV, p. 62) – ‘lugar’ onde reside igualmente o erotismo (vincado no poema I, p. 49, através do verso de António Ramos Rosa «não havia visão mais lúcida que a do desejo» – poeta que, coincidentemente, celebraria ontem mesmo o seu centésimo aniversário), e, de forma acentuada, onde mora a desesperança, o desespero, o silêncio, por vezes um doer físico (como por exemplo nos poemas XI, p. 59, e XIV, p. 62). Um ‘lugar’ onde as palavras são sempre poucas para traduzir as emoções, os afetos, os apegos… (V, p. 53). Um ‘lugar’ sem futuro, todo condensado no pretérito.
Arestas é isto e muito mais que se não disse. Arestas é uma espécie de digressão sensível pela ilha-mãe da autora, mas é também uma discreta peregrinação íntima à ilha que a própria autora oculta e busca dentro de si, na linha simbólica saramaguiana de O conto da ilha desconhecida: «É necessário sair da ilha para ver a ilha, não nos vemos se não nos saímos de nós.»
‘Arestas’, de resto, bem limadas, com ‘verdadeira poesia’ dentro, onde sobressaem expressivas metáforas e belas sinestesias (X, p. 20), bem como construções singulares (como «Lugar eternal/ onde naufragam poetas/ e se suicidam poemas» ou «Mergulhava nos desfiladeiros da ilha/ e escalava ondas do mar.»), e que funcionam como «analgésico natural» (como se regista na epígrafe de abertura). Como se lê no poema que encerra a obra, há livros assim, livros que «No corso das páginas,/ alçam ternuras, hasteiam bandeiras,/ remoendo memórias antigas/ de outros mundos, de outras gentes».// E retemperam sonhos em desalinho,/ nas quimeras que desfizemos…» (XVIII, p. 66).
Gostaria, finalmente, porque de ‘arestas’ se fala, de recordar um amigo que muito estimava, também madeirense – conhecido e reconhecido professor universitário e especialista em literatura medieval e oratura, já falecido – lendo-lhe uma passagem do seu poema 8. «Lugar casa», inserta no seu pequenino livro de cordel, Onze Mais Um Poemas e Lugares (edição da Câmara Municipal do Funchal, 2001):
Aqui onde ainda estou tão poliédrico como um ser sem qualquer peça de roupa pode ser pareço encontrar afinal arestas para me afirmar junto destas paredes destes ângulos súbito agressivos como os vizinhos cinzentos que nem conheço nem me apetece conhecer. David Pinto Correia
Outras arestas, as mesmas arestas, arestas que fazemos por polir e versejar, na poesia como na vida.