Para sabermos ler Monchique cada vez melhor
Texto de José Gonçalo Duarte, de suporte à apresentação do livro «Monchique e outros poemas» (ed. On y va), de José Manuel Barroso, na Casa das Palavras, em Monchique, a 22 de Junho de 2024. José Gonçalo Duarte, formado em Património Cultural e com um mestrado em História da Arte, é presidente da Junta de Freguesia de Monchique.
Quando fui convidado para fazer esta apresentação, a minha primeira intenção foi dizer que não. Não sou entendido em literatura, não domino a poesia, apenas a sinto como quando provo um copo de vinho e me agrada o sabor, ou oiço uma peça musical e não me arranha o tímpano e digo que é boa. Sabia que poderia sempre usar a minha liberdade para recusar.
Uns dias depois recebi os 27 poemas do livro e a capa, digitalmente. Essa circunstância mudou tudo e fez-me dizer que sim e estar agora, aqui, a abordar este assunto convosco, de uma forma quase holística.
Desculpem esta espécie de introdução, mas tenho de justificar a minha dificuldade em levar a bom porto esta tarefa. É que ela aparece como um desafio que me fez lembrar de imediato um amigo, já desaparecido fisicamente, que sempre me dizia – quando sentires dúvidas ou até acanhamento, deixa atuar o espírito, seja isso o que se queira que seja.
Remeti de imediato o pensamento para Ortega y Gasset, talvez o meu conceito filosófico preferido, entre os abstracionismos e os positivismos, os anarquismos, etc, interiorizando que cada indivíduo está condenado às suas circunstâncias, onde tropeça e arranja soluções para ir dando sentido à sua vida.
Primeira circunstância, vejo no convite para este evento o que entendi como título «Um regresso a Monchique» e pensei: um saudosismo apenas, uma nostalgia… mas reparei logo na linha de baixo no que realmente é o nome da obra, «Monchique e outros poemas» e foi aí que se deu o clique. Monchique, presente no nosso genoma, é um poema e é complementado por outros poemas. Nunca tinha pensado assim. Senti que o José Manuel Barroso, nascido em 1942 nos Açores e vindo para Monchique em 1951, no uso do produto resultante das suas circunstâncias, de infância, de adolescência, ao longo da vida, e agora, quando volta com o neto e lhe traça imagens, lê poemas nas ruas e nas fachadas das casas, recita sonetos na degustação do bolo de Maio, glosa a Rua do Porto Fundo com o Largo dos Chorões, aquelas circunstâncias tornaram-se também minhas, quando a Rua do Porto Fundo se tornou uma circunstância importante, forte e ocupou a minha vida durante 45 anos. Foi nessa rua, na Farmácia Moderna, onde trabalhava, que vi pela primeira vez e me foi apresentado o José Manuel Barroso.
José Manuel Furtado, meu patrão e amigo, disse-me que este senhor era jornalista, era sobrinho de Mário Soares, viveu por aqui onde frequentou a escola e o colégio, porque o pai trabalhava cá como notário…
Por altura deste encontro na farmácia, nascia o «Jornal de Monchique». Esta circunstância levou até a trocas de impressões, de que talvez não se recorde, mas sabíamos que dirigiu a ANOP, o «Diário de Notícias», etc, e isso era sugestivo para diminuir o nosso profundo desconhecimento destas lides. Havia também alguma relação nas conversas entre nós, os que vivíamos em Monchique, com o José Manuel Furtado, que nos falava do 25 de Abril, da criação da Associação dos Deficientes da Forças Armadas e do amadurecimento que relações com pessoas com destaque no país, entre as quais José Manuel Barroso, que pertenceu à estrutura do Conselho de Revolução, lhe proporcionavam.
Bem, depois do título do livro, já a obrigar à minha não escusa em estar aqui hoje neste papel, a capa surge-me com uma força impressionante, quase a provocar-me vertigem. A Ana Sofia Alexandre, autora da fotografia, captou com a lente um poema bem legível, nas paredes, no fundo, na luz, na diagonalidade, mas sobretudo no que representa esta estrofe para moldar o formato urbanístico da vila. A azinhaga (Travessa das Guerreiras) vinha do Castelo até ao Porto Fundo que era a ribeira entubada sob o que desde 1895 é o Largo da Fonte dos Chorões e subia para a Eira de São Sebastião, onde agora está o parque subterrâneo para estacionamento. A cicatriz urbana está lá toda, quase intacta. Foram construídas casas a interromper o percurso, mas veja-se o alinhamento e os pontos de interseção. A fotografia da capa é uma linha de força que enriquece sobremaneira esta obra.
Depois… o primeiro poema do livro, «Monchique» (p. 7). Um desfiar de memórias, com cheiros, sabores, entusiasmos, até dores sentidas nos joelhos contra as pedras da rua mas logo esquecidas pela panaceia que a cor vermelha do mercurocromo trazia. E não resisto a repetir, mais do que recitar: «Dobra-se uma montanha e é Monchique/ e no horizonte próximo outra,/ debruçada sobre castanheiros antigos (…)»
Acredito que é isto a essência do que o José Manuel Barroso e toda a gente sente ao vir a Monchique, não importa quantas vezes.
E que dizer do poema «Pássaro» (p. 15) – «o espírito/ das pequenas pedras»? Este espírito de uma pedra, que imagem bonita, quase irónica, diria eu. Mas uma pequena pedra pode ser o toque de nível para a construção de uma catedral, ou ser usada numa fisga por uma criança, ou tornar-se num grande incómodo se estiver dentro de um sapato. Ou, dependendo da sua composição química, valer milhões…
Outro ponto alto do livro, o poema «Diário íntimo» (p. 17), a visão, a memória, a recordação, a inspiração, sei lá, este misto de sentimentos termina no desassossego que se sente num verso simples: «E Monchique era longe.»
Coisa que se resolve. Se alterar a circunstância – «Não, não estou feliz», no poema «Estar e ser» (p. 18») – «Agora? Agora…quero ser feliz/ e sobrevoar a montanha da Picota.»
«A serpente» (p. 23) é o poema mais pequeno de todos. Mas de uma profundidade imensa. Eu entendi aqui a juventude atual do José Manuel Barroso, quando refere (num outro poema, p. 43) que no Colégio de Santa Catarina observava os seios das raparigas que bailavam… e agora? Agora ainda come maçã. Onde? No paraíso do quarto. De que forma? Devora. Porquê? Porque a história da serpente ainda não terminou.
Desejo, com toda a sinceridade, que sinta tentações durante muito mais tempo.
Sem saudosismo bacoco, fala sem preconceito da sua circunstância dos 14 anos e da Mocidade Portuguesa. E das primeiras paixões. E da biblioteca do pai – madura, mas nem sempre compreendida (p. 27), num outro poema grande de memórias.
Que dizer das árvores? De «A árvores extraordinárias» (p. 38). Uma questão fulcral. Não sei se todos já pensamos nisto alguma vez. Um poema que termina assim: («Como saber se os plátanos do Pé da Cruz/ têm mágoas nas suas folhas?)».
Mas a vida corre, e em «Maçãs» (p. 39) as estações do ano levam à exaltação dos sentidos e o paraíso, as maçãs, as tentações, o calor de verão, o humor e o amor, um toque de erotismo… «Ontem ouvi cigarras a cantar» (…) «Tão em fogo como as maçãs{ dos teus seios.» Deixe-me brincar, caro José Manuel, se fossem peros em vez de maçãs, seria tentado por alguma Maria em vez de Eva, nas Caldas em vez do paraíso?
O autor termina este livro com poemas à memória (p. 44) e ao amigo Hermínio (p. 45) , de fortíssima homenagem à amizade.
Eu termino, agradecendo ao José Manuel Barroso, à Ana Sofia Alexandre e ao António Manuel Venda a circunstância de eu próprio e de certamente todos os que estamos na Casa das Palavras sentirmos enriquecida a nossa vida e sabermos ler cada vez melhor Monchique, como poema e também todos os outros poemas.
Foi uma ótima, belíssima e gratificante circunstância esta que hoje aqui me aconteceu.