Monchique e outros poemas
Texto de António Souto, poeta e professor, sobre «Monchique e outros poemas» (ed. On y va), de José Manuel Barroso; suporte da intervenção em Lisboa na apresentação do livro (Escola Secundária de Camões – MUESC), a 18 de Outubro de 2024
Neste livro, os poemas desfilam como postais ilustrados que fixam imagens que a memória reteve, filtradas agora pela distância da idade. Aproximações subjetivas que o leitor decifrará nas palavras-feitas-poesia.
São 27 poemas, alguns dos quais desdobrados em andamentos de partitura, onde o poeta, em intensas figurações, passa em revista a infância e a adolescência «livre» no «espaço infinito» da vila algarvia, recortado por espaços físicos, psicológicos e sociais.
A primeira das composições, qual Arco da Rua Augusta, deixa aceder a ruas, ruelas, muros e ruínas, a casas que guardam aventuras e segredos, ao natural rito de iniciação à puberdade, entre a brincadeira e o «retalhar» dos «cantos de Os Lusíadas». Chama-se «Monchique» e tem sete painéis que se sucedem como instantâneos desencadeados pela chegada do sujeito poético à vila, de automóvel, enquanto «Uma aragem a limoeiros/ e laranjeiras crepita sobre a estrada.» Assim, como o acender de «um fósforo na noite da memória». E faz-se luz!
Depois, depois caem lembranças em pretérito imperfeito, espécie de roteiro embutido entre duas montanhas – «rijos seios de granito», «dois dinossauros fossilizados» –, reminiscências boas e lindas enclausuradas num tempo que se sabe irreversível, sem se saber, como diz o poeta, «o que fazer com isso». (pág. 7)
Um percurso, espécie de sublimação poética de «lugares», orientado por múltiplos pontos, nomeados todos, do Café Montanha ao Largo dos Chorões, da Farmácia Moderna ao Colégio de Santa Catarina, da Quinta das Relvinhas à Quinta dos Lilases, sem esquecer o icónico alto da Fóia.
Um percurso orientado por impulsos sazonais de frutas e bolos, de festas e cheiros apaladados, por histórias picantes e picarescas, a que não falta o senhor prior, por fantasias e aventuras juvenis pelas «ruínas/ do convento abandonado», que depois dava descanso aos heróis estendidos «ao sol/ sobre os seus muros desdentados» (pág. 8)
Um percurso de «costumes» entranhados, como «a matança do porco» e «a festa das carnes», tudo brindado com «um copinho de aguardente de medronho».
Um percurso de árvores e flores coloridas.
Um itinerário de raízes!
Entretanto, apaga-se o fósforo e volta-se à realidade. O automóvel avança, Monchique fica logo ali, ao dobrar de uma montanha, com outra no horizonte próximo, «debruçada sobre castanheiros antigos». E o poeta medita, expectante, em interrogativas várias: «Será que hoje procuro alguma coisa/ que já tenha visto?» (…) «Alguém que roube/ e leia depois, de pés descalços, os meus poemas?» E fica-nos a pairar a questão: como terá sido o reencontro tardio?
Nos poemas seguintes, voltará o poeta às suas árvores e ao abraço delas – «O pinheiro decorado anuncia o Natal/ e o inverno./ O jacarandá festeja a primavera./ A amoreira anuncia o verão./ O castanheiro festeja o outono.» («Árvores», pág. 43) –, para nos encaminhar por instantes fotográficos e por versos lírico-narrativos onde pontuam tantas vezes uma fina ironia e um humor hilariante, como nos poemas «Biblioteca» (pág. 27) e «A minha história de Natal» (pág. 41).
E há o desejo de evasão, agora, pelo ar, como os pássaros – «Queria que alguém me levasse agora/ e ser pássaro e conhecer a palavra/ nascida para o canto» («Pássaro», pág. 15) –, ou pelo cimo da montanha, só para ver o mar – «Alguém que me leve agora/ sobre a difusa tarde/ da encosta da Fóia/ a ver o mar além do horizonte» («Sobre a difusa tarde», pág. 16).
E há também versos dolentes, incapazes de dizer o «longe» e a «distância», como no poema «Diário íntimo» (pág. 17), que bem poderia ser a arte poética deste livro.
E há o silêncio e o sossego da noite («Ciclo», pág. 24) que, conjugados com a metáfora da «viagem», em modulação intimista, como em «Confissão» (pág. 25), parecem apontar para a rendição do guerreiro.
E há, sublinharíamos, o relevo dado pelo poeta à «casa», flexionada em número, «a grande casa», que «amávamos», e onde «Havia galos e quintais em redor», só perturbada «por aquela rapariga nova» que o pai aceitara («O machado», pág. 33), ou às casas, ora porque é nelas que ainda mora – «Habito ainda todas as casas que habitei/ estão inteiras dentro de mim» («Todas as casas», pág. 20) –, ora porque é nelas que encontra ainda, embora turvas, o aconchego do presente outubro-outono – «outubro/ tem casas turvas dentro dos dias de ouro» («Que sabes tu de outubro?», pág. 21) –, ora porque a memória delas, presentificada pelo demonstrativo «esta», lhe cause insónias – «Adoro esta casa antiga sobre a serra/ (o que não consigo é dormir,/ pelo barulho das janelas).» («Casa antiga», pág. 26)
E há uma certa desolação do «Algarve de hoje».
E há uma requintada ironia associada ao humor em torno da recordação da Mocidade Portuguesa e do professor de ginástica, o Dom Diogo (pág. 29), e da paixão fugaz, aos quinze anos, pela Rose, pela sua Rose, e do livro de «coisas demasiado íntimas» que emprestara, sem saber do conteúdo, à tia dela (pág. 31).
E há, no final do livro, como cereja no topo do bolo, o delicadíssimo poema onde o poeta se desvenda e cabe por inteiro. Chama-se «Hermínio». Um poema de saudade, de amizade terna e fraterna, de amor, de tristeza e de rugas, em que «a grande casa do senhor coronel da vila/ tem paredes também rugosas de tinta/ esquecidas de si e vidros quebrados nas janelas/ e um letreiro que diz ‘vende-se’».
Concluindo, e tratando-se de um poeta também de Abril, seríamos tentados a dizer que a poesia de José Manuel Barroso, e parodiando José Mário Branco, é também uma arma. Neste caso particular de Monchique e outros poemas, uma bonita arma de benquerença à vila de Monchique. Ou, simplificando, diríamos tratar-se de um belíssimo livro de poesia com Monchique e o poeta dentro. Há muitos anos. E «o belo», como ele mesmo diz, no seu poema «Domingo» (pág. 40), numa feliz abstração, «não anoitece», não obstante aflorar, com alguma constância, um tom nostálgico «à Pessoa», como na composição «Estar e ser» (pág. 18). Composição que podemos cotejar com aquele final do poema «Pobre velha música!» do ortónimo: «Com que ânsia tão raiva/ Quero aquele outrora!/ E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora.»
Para rematar, e dois anos depois de o autor ter lido um poema meu, «Afinidade», na apresentação da segunda edição do meu O Milagre do Entardecer, em 4 de abril de 2023, na Universidade Lusófona, leio também, em jeito de singela retribuição, um poema seu – publicado em 2023 no blogue Ruído Manifesto:
Dois anos depois, o peso do mundo Não é apenas aos sábados e domingos que sinto o peso do mundo nos pulmões às segundas-feiras ainda respiro o ar que sobrou do fim-de-semana seria muito menos pesado ter um arco-íris nos olhos ou andar sonhando memórias pelas ruas da cidade ou atiçar um forno com pão quente ao meio-dia mas reparo que o céu anda veloz sobre a minha cabeça. Preciso dos poetas antes que despontem os ciprestes nas janelas dos gritos aprisionados.