Um olhar sobre «Uma Estranha Brisa pela Madrugada»

Texto de António Manuel Venda, de suporte à apresentação da segunda edição do romance «Uma Estranha Brisa pela Madrugada» (ed. On y va), de Rodolfo Miguel Begonha. Apresentações a 4 de Abril de 2024, em Lisboa, na Universidade Lusófona (Auditório da Biblioteca Victor de Sá), e depois a 18 de Maio, na Casa das Palavras na Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos, em Monchique.

 

Associo às personagens os romances que leio, e devo assinalar que os romances a que me refiro são aqueles de que que gosto, ou antes, aqueles de que vou gostando página a página até ao fim. Não acontece isto com toda a gente. Há quem tenha a força que eu não tenho, a paciência, o tempo, a teimosia, nem sei o que mais. Há quem leia, por exemplo pessoas minhas amigas, e que me dizem que nunca desistem. Acham importante terminar, já que começaram. Eu aí não digo nada. Respeito. E imagino. Nem sei, imagino um cilício… Já cheguei a imaginar o transporte de um cilício ler um livro até ao fim. Visto de agora, até posso dizer que passei por isso, no ensino secundário, com o que me obrigavam a ler, e até ao fim. Mas nesse tempo eu nunca tinha ouvido a palavra cilício. Provavelmente não havia disso na minha terra, em Monchique. E cilício é uma palavra que me parece terrível. Nem a sonoridade a salva. Nesse tempo, palavras terríveis para mim, por exemplo, eram três, as que formavam o nome da professora de português, que eu via semana após semana como um meio-caminho entre um pequeno escorpião que por vezes gritava e uma cobra venenosa que convinha manter a uma certa distância.

Volto às personagens, à ideia de a elas associar os livros que leio, aqueles que consigo ler. O escritor Roberto Bolaño, personagem em cerca de cinquenta páginas de um romance maravilhoso de Javier Cercas. O terrível Pascual Duarte no primeiro romance de Camilo José Cela, escrito quase cinquenta anos antes do seu Prémio Nobel. Um menino chamado Jóia num romance lisboeta de Lídia Jorge em meados da década de 1980, um dos da sua primeira fase, creio que o terceiro. O estranho Pedro Camacho de um inigualável romance de Mario Vargas Llosa. Uma mulher de que não traduzo o nome pelo impacto que tem o nome original, La Tigra, numa pequena e ao mesmo tempo monumental novela de José de la Cuadra, o homem que inventou o realismo mágico vinte aos antes da fama de Juan Rulfo e trinta antes de esse mesmo realismo mágico ter sido descoberto oficialmente.

É verdade, associo os romances a personagens, como se fossem elas a ajudar-me a arrumá-los não numa biblioteca mas na minha cabeça. Mas não é só isso. Há os lugares. «A Cidade e os Cães», de Mario Vargas Llosa, traz-me sempre o bairro de Miraflores, na cidade de Lima, junto ao Pacífico. Também de Mario Vargas Llosa, o inesquecível «Pantaleão e as Visitadoras» leva-me a Iquitos, na amazónia peruana. Nos romances policiais de Alicia Giménez Bartlett tenho uma cidade que amo, Barcelona, como a tenho nos romances de Eduardo Mendoza.

Talvez possa dizer, sem fugir nada à verdade, que são os lugares que me ligam aos romances. Mais até, em muitos casos, do que as personagens.

Isso acontece em «Uma Estranha Brisa pela Madrugada», de Rodolfo Miguel Begonha, o meu amigo Rodolfo. Um romance que não li para esta apresentação, porque já o li diversas vezes no processo de edição. Li-o sempre com um sentimento de pena por saber que ia acabar, por vê-lo aproximar-se do fim. Uma história tão boa… E tem os lugares perto da minha casa. Vejo personagens de carro a ir de Lagoa para Portimão pela ponte nova sobre o Rio Arade, e chega até a haver um problema de trânsito por causa de qualquer coisa relacionada com Donald Trump, ao tempo presidente dos Estados Unidos. Vejo Porches, freguesia de Lagoa, e vejo o interior algarvio. Vislumbro a serra onde nasci. E em Porches dou com algo muito curioso, para mim: numa quinta, uma personagem no jardim dessa quinta pensa na vida, em tantos problemas, e um pouco afastado passa um escalavardo. A personagem não dá por ele. O escalavardo não faz ali nada; a escrita da página passava bem sem o seu aparecimento, mas eu ao ler – talvez seja presunção minha –, ao ler sinto que o autor o colocou ali, viajado quem sabe das serranias de Monchique, só para ver se eu dava por ele. Pior, o autor escreveu escalavardo, como eu digo e como é usual dizer-se na minha terra, em vez de se dizer o vulgar nome saca-rabos – que até é um nome feio, ao contrário de escalavardo. Já o bicho é feio, ele mesmo, chame-se-lhe o que se lhe chame.

O autor, creio, colocou-o ali como uma certa graciosidade. Como quem me diz, só a mim: vês, também sou capaz de pôr um escalavardo dos teus num romance, e nem precisa de ser na serra, é em Porches, tão perto do mar, e o dono da quinta, personagem minha, nem dá por ele.

Em «Uma Estranha Brisa pela Madrugada» surgem muitas situações como esta, surpreendentes, que despertam um sorriso, ou outras, que nos deixam perplexos, como a mulher que encontra uma mulher igual a si quando tenta entrar pela primeira vez no edifício onde vai trabalhar, e tem uma teima com ela, que lhe contrapõe uma teima exactamente igual – isto lá bem para norte, no que a mim me parece outro país mas que é indiscutivelmente Portugal, ao que se diz. Mas é no sul que quase tudo se passa no romance, e aí há outra situação de que deixo nota, a de um pobre homem, e bastante mau, quase um Pascual Duarte, um pobre homem que fica sepultado onde nunca ninguém há-de encontrá-lo, com peripécias que metem coincidências, coisas do destino e inquietações de quem tem grandes e estranhos poderes.

História de Lagoa, sobretudo, mas também de Portimão e de outras terras dos Algarve, e um pouco de Lisboa, «Uma Estranha Brisa pela Madrugada» é para ler até ao fim, acho eu, sem sacrifício (para não usar a outra palavra que acaba de forma igual). Não vou dizer que o autor é especialista em nós, humanos – ele lá sabe –, mas das várias leituras que fiz arrisco dizer que nos conhece bem. Na nossa diversidade. Escreve de forma clara e por vezes ascética, austera, até sisuda, e esta palavra, sisuda, compenso-a com outra, malícia, porque nesta escrita ascética não falta nunca a malícia. Creio que há mais maus do que bons, mas mesmo assim o bem acaba por vencer o mal. Já ouvi dizer que nas regras da grande literatura costuma ser ao contrário, ou pelo menos uma aproximação disso. Não sei se é verdade. Posso até ter ouvido mal. Também não estou preocupado em descobrir.

Recordo com gosto as leituras que fiz deste romance. Isto não é um conselho para que o leiam. Um apelo à leitura. Não. É apenas uma partilha. O mesmo vale para os outros romances que referi. Nos anos em que saíram, imagino que foram os grandes romances nos seus países (com excepção de um, que teve de sair noutro continente por causa de um ditador barrigudo). «Uma Estranha Brisa pela Madrugada» também foi, no seu país, um dos grandes romances do ano em que foi publicado. Provavelmente o melhor. O mais surpreendente. O mais estimulante.

[Texto: António Manuel Venda]
28.05.24