É o voo do pássaro
Texto de Clara Andrade, directora da Biblioteca Municipal de Lagoa, de suporte à apresentação do livro de poesia «Pássaro Azul» (ed. On y va), de António Manuel Venda. Lido a 23 de Março de 2024 na Casa das Palavras na Serra dos Dois Dinossauro Adormecidos, em Monchique.
Começo pela leitura do poema «Pássaro azul»:
consigo escrever oito páginas na montanha maior da serra dos dinossauros … é uma luta com a minha cabeça com as recordações com a imaginação mas regresso a casa com uma nova aventura do menino que é tão próximo do meu filho mais velho o mais crescido dos meus quatro super-heróis … nessa aventura o menino segura nos braços um bebé que dormita e que é tão próximo do meu filho mais novo … um pouco afastadas duas meninas tão próximas das minhas filhas conversam brincam conversando na zona dos estendais um pouco antes de a senhora que ali trabalha há tantos anos surgir no caminho de brita desde casa com um alguidar de roupa e um pequeno cesto cheio de molas de tantas cores … o menino pensa em ir observar um pássaro amarelo sobre o qual ouviu ser quase impossível de observar ele acredita que esse pássaro poderá estar numa figueira muito antiga do monte mas acredita ainda mais acredita que perto da figueira numa oliveira também muito antiga poderá estar um pássaro azul capaz de chorar um pássaro azul que quer também ele observar o pássaro amarelo que tão dificilmente se deixa ver um pássaro azul (pensa o menino com todas as suas forças) um pássaro azul que quer ainda mais muito mais tanto mais tanto mas tanto mais observá-lo a ele o menino a aproximar-se da figueira antiga nos braços com o bebé que dormita e se possível com as irmãs … o pássaro azul irá chorar de certeza que irá chorar se estiver na oliveira o amarelo não há-de entreter-se a comer figos se estiver na figueira antiga por um qualquer milagre aliás nem é importante que esteja o azul sim esse é importante fundamental decisivo vital pensa o menino aproximando-se com o bebé que dormita e as irmãs a segui-lo de perto … é o que escrevi em gatafunhos na montanha maior da serra dos dinossauros a dos dois dinossauros adormecidos cai a noite não já caiu há quase uma hora ali onde olho com a ajuda da lanterna do telemóvel para as oito páginas da aventura do menino é ali na montanha que penso ao mesmo tempo nos versos de um poema acabado de escrever ainda com o dia bem vivo a oito mil quilómetros de distância … alguém me vê a correr pela montanha nesse poema é a mesma montanha a maior da serra dos dois dinossauros adormecidos mas eu agora não corro estou parado com a aventura do menino nas mãos as oito páginas estou parado tão parado como o menino que segura nos braços o bebé que dormita o menino que tenta sorrir para as irmãs e procura na oliveira o pássaro azul
«Pássaro azul» é um poema que parece representar e concentrar a matéria e a temática de quase todo o livro, claramente um livro sobre os filhos do autor, e um livro que lhes é dedicado. O livro canta os seus heróis, figuras-chave da obra e que podemos também encontrar num outro livro de poesia do autor, «Voar». Li que este «Pássaro Azul» e o anterior publicado pelo António, de prosa, são livros gémeos. Concordo. Na sua matéria e nas suas palavras vivem dentro um do outro. Talvez se completem. Como talvez completem outras obras do autor, e refiro-me concretamente ao citado «Voar» e aos restantes que com «O Pássaro Azul do Montado» juntam as aventuras do pequeno Tukie, com a sensibilidade no relato de experiências vividas com os filhos, num ambiente onde a natureza, a intimidade e o espanto, estão sempre presentes; onde tudo nos remete para o mesmo universo de afetos; onde a Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos – uma imagem fortíssima – está sempre, também, presente.
«Pássaro azul» abre o livro e dá-lhe o título, é um poema longo, de regresso às memórias, experiências e aventuras vividas com os filhos. É um voltar à Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos, à realidade concreta das coisas da natureza, aos objetos de todos os dias, como as plantas, os animais e as pessoas com as suas tarefas e os seus afazeres.
E é, também, a evocação de um lugar a 8.000 quilómetros de distância, não nomeado, mas situado algures na América Latina e refletido também no poema «Tulcán» e talvez no poema «O que não se vê».
«Pássaro azul» é um poema que quer lembrar e re-imaginar o que está longe. Num lugar concreto no Algarve, alegórica e persistentemente nomeado como a Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos. Um lugar longe no tempo, que restitui o tempo da infância. É na referência a esta serra que o autor vai cruzar a sua voz com a voz de uma poeta. Quando diz:
alguém me vê a correr pela montanha nesse poema é a mesma montanha a maior da serra
Refere-se ao poema «Encruzilhada», do livro «O que Foi Cidade», de Liyanis González Padrón. Uma parte deste poema está transcrito em epígrafe no início do livro. Leio o início do poema:
Corres pela rota ziguezagueante da mesma montanha para que o ar frio te bata nos joelhos Levas no rosto a luz como um sinal de paz ou de sentença e, nos olhos, o dardo da nostalgia ou a afronta de um conquistador Corres, corres, corres até chegar à encruzilhada que dilata no teu sangue um bosque um eco um aluvião
«Pássaro azul» é um poema que evoca a saudade, a distância, o regresso a casa, lugar que alberga tudo o que somos. O lugar da morada do eu, do Ethos.
Lemos aí:
é uma luta com a minha cabeça com as recordações com a imaginação mas regresso a casa
É também a procura do pássaro azul. Outra imagem forte, título deste poema e do livro. Imagem que pela sua simbologia nos eleva e que sugere uma outra realidade de natureza metafísica e metafórica.
É o sentir de um assombro, de um encantamento, também experienciado e contado num outro livro do autor, com o qual também se cruza, e não por acaso com o título «O Pássaro Azul do Montado», um dos três livros das aventuras do pequeno Tukie, já referidas.
Portanto, não podemos esquecer o pássaro.
Porque o pássaro contém significados, que nos abrem as portas de entrada na poética do António. Uma realidade pertencente a uma outra ordem, a um outro reino que não se quer deixar ver, mas que está lá. E é lá que mora o pássaro azul.
Pela sua capacidade de voo, o pássaro representa a alma ou o espírito, o vento que flui, o fogo, a chama. É uma entidade fora e além do mundo físico, que faz a ligação do visível com o invisível, do aqui e agora para um outro lugar, para um outro tempo. Que permite experiências poderosamente reveladoras. Que evoca a sombra, as profundezas obscuras e misteriosas do indivíduo. É uma fonte sobrenatural, um brotar espontâneo que tem em si a sua razão de ser, crepuscular e paradoxal. É um tesouro prodigioso. Imagem que se fortifica ao aliar-se à simbologia da cor azul representativa da espiritualidade e do céu, lugar da paz, da unidade e da verdade. Ou seja, o pássaro azul é o inominável, é aquilo que se mostra escondendo-se. Uma imagem forte, epifânica e reveladora da presença do inesperado, do invisível, da procura da transcendência do poeta, do impermanente que subjaz e fundamenta toda a realidade. É a razão de ser e o propósito da poesia, na voz poética do autor.
O livro é constituído por vinte poemas. Expressa-se numa linguagem simples de pendor autobiográfico e fala, na maioria dos poemas, na primeira pessoa, que está sempre presente. Sendo uma entidade ficcional, uma construção imaginária, um sujeito poético, esta voz que fala no poema, que se revela e nos revela a sua interioridade, o seu pensamento, que descreve o real empírico, físico e afetivo, onde transparecem os seus sentimentos, as emoções, as sensações, esta voz é, geralmente, uma voz independente, não a voz do autor. Mas neste livro é a própria voz do autor que fala e que se confunde com a voz poética. A voz do autor não se oculta nem esconde. Está lá sem máscaras, objetivada e à vista de todos, sem se distanciar. Cada poema é uma narrativa, uma pequena história que nos é contada por um eu, o António, completamente à vista e com os filhos no coração aberto.
É uma poesia de versos livres com uma linguagem coloquial. Limpa de arremedos estilísticos, diria, sem metáforas, se não fosse o pássaro azul, e em comunhão com as coisas do aqui e do agora. É uma poesia onde predomina uma simplicidade que nos prende e nos leva pelas experiências, pelas memórias e pelos sentimentos do autor.
Ouso dizer que é uma poesia cuja simplicidade formal lembra a poesia de Charles Bukowski, se lhe retirarmos a decadência, o desencanto, a brutalidade e a violência das imagens. Imagens e expressões não encontradas aqui, onde a palavra é nobre, gentil e delicada.
Bukowski desfaz-nos, o António regenera-nos e devolve-nos ao melhor de nós mesmos, porque nos leva por um caminho secreto até ao lugar aconchegante do coração.
Reconheço-lhe um realismo natural, com elementos do quotidiano descritos na sua objetividade. E inocência. E candura. Uma poesia que vive perto da terra, uma força telúrica que atravessa a maioria senão todos os poemas. Poesia onde o real é descoberto na sua evidência quase sempre através de imagens/ recordações dos filhos. São as coisas elas mesmas que se mostram: as árvores, as plantas e os animais, como pano de fundo, onde o poeta se descobre na evidência de um amor fortíssimo, o amor paternal, evocado através das palavras banais de todos os dias, palavras que riem, que se espantam, que se afligem e encantam. Que se enternecem com o pequeno gesto do chupa-chupa (poema «Super-herói») ou que choram as lágrimas que o filho não chorou, como podemos ver no poema «Quando se chora», que leio:
setembro um final de tarde no meu mundo lembro-me sempre desse final de tarde … a três mil quilómetros de distância um menino maravilhoso começou assim do alto tão alto dos seus quatro anos a descrever ao telefone o primeiro dia de escola – pai eu não chorei … o pai sim claro
É a grandeza e a simplicidade do que realmente importa, do autenticamente descoberto e vivido.
É uma poesia também sulcada pela profundidade das raízes à terra, Monchique, como já vimos, representada repetidamente pela Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos, lugar mítico que evoca um tempo fundante e fundador do seu mundo e de si próprio, o tempo da infância que viaja do passado ao presente e do presente ao passado transportado pela memória, pela imaginação. Um tempo sem tempo, um eterno presente de memórias feito, um tempo mítico onde tudo pode acontecer. É esse o lugar da Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos, que o poeta carrega sempre consigo, tudo transfigurado em matéria de sonho, em poesia. Um lugar de múltiplas significações e sentidos, um lugar de aspirações profundas, de acolhimento, de resguardo, de proteção. Um lugar benévolo onde sempre quer regressar.
O autor é um poeta contemporâneo, que naturalmente exprime a estética do tempo que a literatura hoje vive. Traz para a poesia o quotidiano do campo e da natureza, não numa leitura paradisíaca ou bucólica à maneira dos românticos, mas mantendo a sua concreticidade, um real surpreendente, vivo de diversidade, alegria e beleza, de memórias transmitidas com objetividade e realismo. Conseguimos ver os pássaros, os pirilampos, as rãs, os cães, os gatos, as corujas, as formigas, as cobras, os galos, as galinhas e o mar e o céu e o sol. As oliveiras, as figueiras, os canteiros, os limoeiros e os seus bicos, as uvas de mel.
Mas também o alguidar de roupa, o cesto cheio de molas, caixas velhas, futebol, os livros. E sempre as crianças, os seus meninos e as suas meninas, os filhos, e às vezes o seu pai. É uma visão concreta e não romantizada da natureza, onde contudo consegue encontrar as maravilhas do mundo intangível do pássaro azul, onde no não dito se ouve chamar a saudade das coisas passadas, a tristeza, a alegria e o espanto de um mundo tão vasto, tão incongruente, tão belo.
É, assim, uma poesia que se move, repito, ao lado das coisas, das árvores, dos bichos e das pessoas, sob o olhar e a proteção da Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos. Uma poesia que brota do coração do autor, da sua sensibilidade e da sua delicadeza, do amor grande pelos filhos, da atenção e do cuidado às coisas do mundo. É uma poesia que revela o autor, o homem que o António é: um homem sereno, integro, comprometido com o mundo e com o que realmente importa.
O António é um autor de uma escrita descomplicada, limpa de exageros retóricos, que não compromete o absoluto, mas que o evoca e o aspira. Como disse Yosa Buson, poeta japonês do século XVIII, «a essência do poema reside no uso de palavras comuns para chegar àquilo que não é comum».
É assim a poesia do António. Faz-se de palavras que na sua simplicidade elevam mais alto, vão do real concreto ao absoluto, à casa da poesia e do belo. É o voo do pássaro, do pássaro azul.
Termino com a leitura de um poema que destaquei pela sua singularidade no todo da obra, onde se deixa ver uma visão crítica e comprometida do mundo das coisas civilizadas. É o poema «Tantas coisas»:
construíam passadiços mas não conseguiam aproximar-se da civilização … ignoravam entre tantas coisas que quanto mais construíam mais longe ficavam