«O meu DNA é geológico…»

Texto de Eduardo Jorge Duarte, lido na apresentação do seu livro de contos «Três-Setes» (ed. On y va), na Junta de Freguesia de Monchique, na tarde de 9 de Dezembro de 2023

 

Quando ficamos muito tempo a olhar para uma coisa, ao ponto de a conhecer com minúcia, de lhe saber enumerar os defeitos e as virtudes e de a trazer sempre presente na lembrança, corremos o risco de deixar de reparar e de considerar o que está para além dela, de esquecer o que lhe sobreveio ou de ignorar tudo aquilo que a rodeia, tornando-nos parte indistinta dessa coisa no que de bom e de mau transporta consigo. Sei que a minha devoção por Monchique e a minha ambição em fundir-me com o magma incandescente na origem destas pedras acarreta o perigo de esquecer que há mais pedras, mais montanhas, mais árvores na floresta e mais vida para além deste lugar central da minha imaginação, ou não fosse o jogo de cartas que dá título a este conjunto de contos um exemplo sintomático de que nada se cria sozinho ou na escuridão. Originário da Itália, parente da muito conhecida sueca, mas mais humilde, por não considerar a importância dos trunfos e por dar a cartas fracas como duques e ternos o poder de deitar abaixo os poderosos ases e reis, deve ser motivo de orgulho saber que, num tempo que tudo esbate e tudo uniformiza até à monotonia, o jogo dos Três-Setes se mantém como um traço identitário da paisagem cultural da Serra de Monchique. Embora seja difícil conhecer as circunstâncias que o trouxeram até nós, jogá-lo (e como eu lamento ser tão mau jogador, atraiçoando a minha memória), jogar aos três setes, dizia eu, é, como nos livros e na leitura, a única forma possível de manter vivo o jogo e de nos sentirmos vivos com ele.

O que aqui me traz, uma vez mais, diante de vós, ao lugar de onde nunca saí, na lembrança, no pensamento e na imaginação, é, portanto, essa imanência sempre viva na minha consciência, apresentando mais um contributo para o mapa literário de Monchique. Com as suas deformações próprias, iguais àqueles exageros e carências a que nos sujeitam as projeções cartográficas quando tentamos fazer do espaço plano da folha em branco uma forma de representação do mundo, é apenas mais um fragmento euclidiano a fazer escala com os verdadeiros gigantes que esta terra viu nascer. Sem pretensiosismos de outra ordem, junto as minhas modestas linhas à autenticidade daquelas que, embora injustamente esquecidas pelas recentes rotas literárias da moda, saíram daqui para dar a volta ao mundo pela mão de Manuel do Nascimento, António Manuel Venda ou António da Silva Carriço, mostrando em letra redonda que a Terra também o é.

Evitando a todo o custo a desfaçatez de impor a minha visão provinciana de Monchique no mundo, estas narrativas são, pois, o resultado de um afetuoso exercício no qual coloco em prática aquilo que o poeta Manoel de Barros nos ensinou: «O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê… É preciso transver o mundo». Ora, muito embora o tema «famílias» seja transversal e transvisto em quase todas estas histórias, ainda que o olho que as lê possa distinguir a morfologia de Monchique nas paisagens e pondo como condição que as personagens deem ares a certas pessoas ou façam lembrar um Monchique que já não existe e deixou vestígios nos relevos estampados nas rugas que moldaram os rostos das inúmeras gerações de homens e de mulheres que caminharam sobre este chão, o importante é que não se procure no espaço e no tempo aqui contidos um ou mais pares de coordenadas para o autor ou para alguém que nos possa ser familiar, mas sim as referências geodésicas necessárias ao leitor na árdua e solitária tarefa de encontrar-se a si mesmo. Não é importante achar os marcos que movi, essencial é compreender os infinitos que expressivamente delimitam.

Reflexo do dever profissional de representar a realidade por camadas como modo de chegar ao conjunto, estes contos resultam dessa obsessão latente por Monchique. No entanto, sirvo-me dela para trazer à colação muitas outras, das quais destacaria a necessidade de fazer emergir outras possibilidades para além daquelas que a inexorável realidade nos coloca ou a de compreender o mal como uma parte integrante e tangível do ser-humano que se manifesta de forma implacável desde que o mundo é mundo, sem contudo, aceitá-lo ou justificá-lo. Pelo contrário, é preciso identificar o mal para saber combatê-lo. Outra das obsessões a que aludo, seria a busca por um não sei quê para o qual ainda não encontrei nome, uma carência permanente que encontra no sofrimento partilhado sob a forma de histórias um modo de atribuir à criação artística um certo misticismo epifânico que transcende o simples mas imprescindível papel de entreter ou de dar prazer que lhe é intrínseco. Somos feitos de tempo, mas são as histórias que partilhamos uns com os outros que nos desviam da escuridão e colocam com maior precisão perante as ideias de humanidade ou de eternidade. Acredito que quanto mais um livro nos confronta e nos agita, mais intacto permanecerá o nosso juízo na hora de discernir a verdade. Por último, não posso deixar de salientar o papel fulcral da literatura como espaço vital da liberdade, um bastião de resistência aos vários poderes e às várias ortodoxias que nos privam de viver com dignidade ou de olhar o futuro com entusiasmo. Aumenta o número dos que, num planeta com cada vez menos recursos e em emergência climática, vivem para fugir à miséria ou a trabalhar mais tempo do que seria aceitável para ganharem mais dinheiro do que aquele de que verdadeiramente necessitam para comprar coisas cotadas muito acima do seu justo valor, mas que, na realidade, não lhes fazem assim tanta falta, apenas com o intuito de impressionar um conjunto de pessoas que não conhecem ou de quem não gostam assim tanto. Tenho para mim que a literatura e o magro contributo destes contos podem, ainda que por momentos, desviar-nos dos ritmos frenéticos e ruidosos que nos tratam como parte de um sistema que nos engole de forma voraz e no qual é cada vez mais difícil sentir que somos ouvidos, representados e integrados. Muito embora reconheça que o breve fôlego destas narrativas não chegará para tanto, fiz os possíveis para que estes breves contos se ajustassem à máxima de Montaigne que defende que «cada homem abriga em si a forma inteira da condição humana». Procurei incessantemente que cada palavra aqui escrita estabelecesse na sua medida uma separação entre o essencial e o acessório e que os distintos eus presentes nas diversas narrativas expostas no livro tivessem dentro de si um espírito de empatia e de diálogo no qual cada um de vós se possa reconhecer sem necessidade de redenção.

Monchique é um nome escrito em brasa na ponta dos meus dedos. Mais do que naturalidade, é genética. O meu DNA é geológico, mineral: micas e feldspato. Estes contos, agora revistos, dados a conhecer primeiramente no Jornal de Monchique, são apenas um afloramento rochoso na crista dos dias. Por isso, medi bem os declives da responsabilidade que assumi e calculei bem o risco máximo que corri. Admito, pois, facilmente que este livro que vos apresento não é um desses livros a que Miguel Torga chamaria «paradigmáticos». Dar-se-á, até, muito certamente, o caso bastante provável e natural de alguns de vós considerarem este Três-Setes um mau livro de um género menor. Num mundo marcado pela tudologia, em que as opiniões valem mais do que o próprio entendimento das coisas e em que o silêncio deixou de ser uma forma de civilidade para com a ignorância, uma sonora apreciação negativa é tão legítima que não me envergonha mais do que imaginar, hoje, aqui, neste lugar e nesta hora, na presença dos meus professores, dos meus amigos, da minha família e dos meus irmãos monchiquenses, que vos atraiçoei proferindo em vão nas páginas que escrevi o santo nome inspirador desta serra. Fui a jogo com as cartas que tinha: sem acusos, sem apultanas e sem figuras, apenas na esperança de que emparceirando convosco pudesse ao menos ter o consolo da última vaza, aquela que todos conhecemos bem e à qual soubemos dar o nome poético de terra.

[Texto: Eduardo Jorge Duarte]
10 de Dezembro de 2023