Um ecopoema no esplendor da planície
Texto de Manuel Matos Nunes, de suporte à apresentação do livro «O Pássaro Azul do Montado» (ed. On y va), terceiro e último volume da série «Pequeno Tukie», de António Manuel Venda. Manuel Matos Nunes, poeta, ensaísta e investigador do Centro de Estudos Regianos, de Vila do Conde, apresentou o livro em Lisboa a 15 de Junho de 2023 (Auditório da Biblioteca da Universidade Lusófona) e depois a 24 do mesmo mês em Monchique (Casa das Palavras na Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos).
«O Pássaro Azul do Montado», de António Manuel Venda, terceiro volume das aventuras do pequeno Tukie é, tal como os dois que o precederam – «O Sorriso Enigmático do Javali» e «Uma Serpente de Luzes na Planície» –, um conjunto de histórias sobre uma família que vive num monte alentejano, em pleno montado, mantendo com o meio natural envolvente uma relação de inequívoco afecto.
O montado, sistema agro-florestal caracterizado pelo predomínio de árvores como o sobreiro e a azinheira, é o pano de fundo destas histórias cuja dimensão autobiográfica é claramente apreendida por citações auto-textuais e elementos para-textuais como entrevistas e artigos em periódicos e na blogosfera.
Em destaque na obra, os animais do montado como personagens reais. Personagens reais, dissemos, mas como bem se percebe algumas não se furtam a uma certa derrogação da realidade. É o caso do pássaro azul que dá título ao volume: uma espécie de melro azul, ave só vista e achada no plano ideal da imaginação poética.
Neste conjunto de doze contos de eloquente simplicidade, deparamo-nos, para além do pássaro azul, com outros bem curiosos animais. Vejamos: há uma cobra louca – assim chamada pelo seu comportamento singular –, que se acoita num muro de pedras à entrada do monte; um guarda-rios de plumagem azul e cor-de-laranja, pescando naquele rio que tem o nome histórico de um grande político e militar do Califado de Córdova; um papa-figos que aparece no monte em certa altura do ano, mas que nunca se deixa ver; os indesejados escaravelhos ameaçando as plantas do batatal; coelhos e lebres atravessando-se na estrada nas viagens nocturnas do pai do pequeno Tukie; ginetas e escalavardos que qualquer menino da cidade gostaria de conhecer; uma abelha de corpo azulado pertencente a um enxame instalado no tronco oco de uma oliveira; gatos e cães domésticos, em especial o gato amarelo de nome Palonsiño, acompanhante fiel dos donos como se de um cão se tratasse; dois ratos, um papagaio de tantas cores e veados das serras do sul vindos aos textos nas asas de outras histórias, já não propriamente do montado; e até, imagine-se, estegossauros, brontossauros e t-rexes saídos por milagre jurássico de velhas figurinhas de decalque e de um alfarrábio sobre dinossauros. Caso interessante, o pequeno Tukie é já um leitor formidável que parece não perder tempo com jogos de computador ou de telemóvel. Há referências às suas leituras: um livro de divulgação sobre os animais do montado, obra de consulta frequente; um livro em castelhano com o título «El Abrevadero de los Dinossaurios» (tradução: «O Bebedouro dos Dinossauros») e um romance sobre a vida do imperador inca Atahualpa.
Quanto à família, temos, além de pai e do filho, a mãe do pequeno Tukie, as duas irmãs mais novas e o irmão bebé em cuja capota do carrinho veio poisar o pássaro azul. Veja-se o quadro familiar na ilustração da capa de Sónia Garcia Fevereiro com os seus desenhos e cores de ingénua beleza.
As referências auto-textuais ocorrem com particular significado no conto «Os protagonistas». Aí, há alusões ao poema de António Manuel Venda «O amigo do último lugar» e também a outros do seu livro «Voar», cujos quatro capítulos têm por título os nomes dos próprios filhos: Bernardo, o primogénito, aparece no poema «Lobo mau»; a menina mais nova, Francisca, surge no poema «O comboio»; Madalena, a filha mais velha, no poema «Doce menina»; e o bebé Rodrigo, aquele em cujo carrinho poisou o pássaro azul do montado, é protagonista do poema «Voar» que dá título à obra. Este conto tem a curiosidade de integrar um debate entre o pai, o pequeno Tukie e as suas irmãs sobre poesia narrativa e a existência de protagonistas naquele género poético. Um poema também pode contar uma história e ter o seu herói, dizem o pai e as irmãs, ao contrário do pequeno Tukie, que pensa serem as histórias próprias de contos e romances. Para lá do debate ficcionado, sabemos que António Manuel Venda gosta de contar histórias em poemas, inclinação muito evidente não só em «Voar» como nos seus livros «O Cão Atravessa a Cidade» e «Barcelona».
escreveria um conto
se eliminasse os versos
ou escreveria um pequeno romance
também se eliminasse os versos
Isto diz-se num poema da primeira daquelas obras, o que atesta esta pulsão poética para contar histórias em verso.
No título destas notas de leitura, classificámos «O Pássaro Azul do Montado» como ecopoema, designação em que o antepositivo «eco» deriva do nome «ecologia», especialidade da biologia que estuda a relação dos seres vivos entre si e com o meio no qual vivem. Trata-se de um ecopoema porque as histórias reflectem temas e preocupações de ordem ambiental, isto para além de tudo o mais que contemplam.
Tenha-se em conta que nos seus trabalhos agrícolas o pai do pequeno Tukie recusa o uso de pesticidas, praticando uma agricultura biológica de expressão elementar, ao espalhar na terra montes de cinza e estrume de vacas de pasto. No conto «As viagens por escrever», vemos a sua luta contra a grama infestante, completamente indesejada em canteiros da horta ou semeaduras de batatas, sendo à força de enxada, e depois queimando-a, que se vai defendendo daquela erva de raízes intermináveis, uma erva que, como é dito, se desenvolve «para baixo em vez de se desenvolver para cima».
No conto «Colmeia», é com extremo cuidado que o pai do pequeno Tukie se entrega à poda da oliveira em cujo tronco se instalara, em colmeia natural, uma sociedade de abelhas. Cuidado para não ser atacado por elas e porque não desejava vê-las partir para outro abrigo. O pai do pequeno Tukie gostava da oliveira com o tronco cheio de mel e não tinha intenção de o retirar de lá: aquele mel era para as abelhas que laboriosamente o produziam.
O pai do nosso herói valoriza a vida animal. Não mata cobras, nem ginetas, nem pássaros, respeitando até humildes insectos como os escaravelhos. No citado conto «As viagens por escrever», apanha os escaravelhos das plantas das batatas e mete-os num saco que depois despeja no montado, longe da plantação onde poderiam fazer dano. Com um produto apropriado, à venda nas lojas de agroquímica, seria fácil dar cabo deles, mas não, o pai do pequeno Tukie luta com os escaravelhos de forma limpa. Depois, larga-os no montado, à mercê das aves vorazes, sem grande possibilidade de sobreviverem, pois não é crível que possam alimentar-se de outras plantas nem das folhas dos sobreiros ou azinheiras. De qualquer maneira, tudo o que lhes possa acontecer será sempre de uma forma limpa e natural.
Mas falemos do pássaro azul com figura e bico amarelo de melro, a ave singular que fascinou o pequeno Tukie. Ele «tinha nas penas, em todas as penas, um azul do céu (…), como se dentro dele houvesse um sol minúsculo mas capaz de alimentar todo o seu brilho», pensando o nosso herói que «aquele ser era a figura mais especial do montado, era mesmo a figura mais especial de todas as suas lembranças».
Depois do conto inicial, o pássaro azul é lembrado pelo pequeno Tukie em vários passos das suas histórias: em «O esplendor do guarda-rios», «Um papagaio como os de Atahualpa», «Todos os dias», «Os protagonistas», «A altura pequenina da infância» e «Onde bebem os dinossauros». Há nelas um desejo de reencontrar o pássaro azul. Na penúltima das histórias citadas fala-se da infância e da altura pequenina dos infantes que ele já havia ultrapassado. O pequeno Tukie «estava a ficar crescido. Aos poucos encurtava a distância que o separava do metro e oitenta e cinco do pai». E o que ele queria, o que verdadeiramente queria, era que o pássaro azul do montado o visitasse de novo. O pequeno Tukie, isso é evidente, começava a deixar de ser criança. Já andava livremente pelo montado, a pé ou de bicicleta, vendo e fotografando a beleza dos quadros naturais com que se deparava. Até tinha ido sozinho a uma distância considerável do monte, junto do rio com nome histórico do tal político e militar de origem árabe, um rio onde viu o guarda-rios de plumagem azul e laranja. E já era capaz de ajudar o pai na poda daquela oliveira que tinha o seu tronco oco cheio de mel.
Como entender o pássaro azul e o desejo reiterado do pequeno Tukie em o reencontrar? A escrita literária é um lugar de ambiguidade e o trabalho do leitor é defrontar-se com a expressão dessa ambiguidade, passar do sentido literal do texto aos múltiplos sentidos que ele pode encerrar. O trabalho do leitor é haver-se com as possibilidades polissémicas da literatura.
É por isso que, como leitores, podemos ver no pássaro azul o prenúncio da adolescência do pequeno Tukie. Será válida esta interpretação? É uma interpretação, entre outras possíveis, naquele sentido de que o leitor procede sempre a uma reescrita do texto, afinal inacabado, que lhe é legado pelo autor.
O pássaro azul da adolescência! Então talvez se compreenda a razão de terem acabado as histórias do pequeno Tukie, de ser este volume, pelo que se diz, o último das suas aventuras vindas do tempo já um pouco distante daquele javali adormecido junto do tronco robusto de um sobreiro. Esta a razão ou ainda outra, que é a de, finalmente, o pequeno Tukie surgir acompanhado do último dos seus irmãos, completando-se assim o grupo dos chamados super-heróis do autor:
o mais pequenino
dos meus quatro filhos
o mais pequenino
dos meus quatro super-heróis
Como se diz no poema «Voar», do livro homónimo.
Nas histórias vividas muito foi aprendendo o pequeno Tukie: com o pai, com as suas experiências e com os livros que lhe falavam dos animais do montado. O montado foi uma escola para ele e até para alguns de nós, melancólicas figuras da cidade que tivemos a fortuna de poder acompanhar as suas aventuras.
Lembramo-nos então de Caeiro, o heterónimo de Fernando Pessoa que tinha pena de Cesário Verde porque ele «era um camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade». Ele, Caeiro, amava a natureza e não queria pensar nem saber de nenhum mistério das coisas:
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
Em «O Pássaro Azul do Montado» há uma metafísica: o amor à vida, à floresta e aos animais, os gestos harmoniosos de viver e estar de bem com a natureza.