Escrevo a prosa dos meus versos e fico contente

Notas de leitura de Manuel Matos Nunes, poeta e ensaísta, investigador do Centro de Estudos Regianos, de Vila do Conde, sobre o livro «Voar» (ed. On y va), de António Manuel Venda

 

O título destas notas de leitura sobre Voar (2023), de António Manuel Venda (AMV), é tirado de Alberto Caeiro, da última estrofe do poema XXVIII de O Guardador de Rebanhos: «Por mim, escrevo a prosa dos meus versos/ E fico contente,/ Porque sei que compreendo a Natureza por fora;/ E não a compreendo por dentro/ Porque a Natureza não tem dentro;/ Senão não era a Natureza.»

Diz-nos AMV numa entrevista sobre o seu primeiro trabalho poético, O Cão Atravessa a Cidade (2020), ter ele surgido pela vontade de contar pequenas histórias, mas num ritmo discursivo que só a poesia permitia. A experiência continuou no livro Barcelona (2021) e agora neste Voar. Estamos perante micronarrativas que renunciando à prosa em que normalmente se expressa o género contam em verso sentimentos e vivências do autor: memórias, alegrias, amarguras e perplexidades.

Como temas principais, diríamos até recorrentes, temos a natureza do sul do país, a sua flora e a sua fauna (piscos, melros, felosas, arvelas, cobras, javalis, escalavardos, ginetas, ouriços), natureza que, fazendo jus ao heterónimo pessoano, é compreendida por fora na sua pletórica mas ameaçada diversidade. Temos a serra dos dois dinossauros adormecidos, locus amoenus devastado pelos fogos florestais. O apego do sujeito poético à terra, a inclinação telúrica marcada pela epígrafe de Carlos de Oliveira e pela imagem da capa em que a figura humana se funde e confunde com uma árvore. E além disto, noutro plano, a dicotomia cidade/ província (a cidade de onde vêm os subsídios «das europas» e «das lisboas»), e a crítica à pequena política nacional, os seus actantes aparecendo junto do povo nas horas más com o fito de retirarem dividendos de desgraças e desastres acontecidos.

Voar estrutura-se em quatro secções tituladas com os nomes de cada um dos filhos do autor. O enternecimento próprio de uma dinâmica poética assente no amor que um pai sente pelos filhos junta-se aos temas citados. Rodrigo, Francisca, Madalena, Bernardo: a menção é feita por ordem crescente de idades, das memórias mais recentes para as mais antigas. Todas tocantes. Temos «voar», verbo-poema em Rodrigo, dando título à obra (p. 11). Temos «o comboio», na secção Francisca: «ficávamos na plataforma/ da estação/ abandonada/ os dois/ os dois à espera/ que aparecesse/ aquela serpente/ muito comprida/ a apitar/ sempre a apitar» e ainda «ficávamos os dois/ abraçados/ eu tinha tanto medo/ a minha filha mais nova e eu» (p. 27). Que seja o pai e não a menina a sentir medo, diz bem do sentido emotivo dos pais ante o milagre daquelas pequenas plantas, exultantes de vida, que lhes é dado fazer crescer, amparar, transplantar para outros vasos e até, como é o caso, saudar com amor no movimento perpétuo da poesia. Em Madalena, no poema «doce menina», conhecemos a nini que queria ser escritora quando fosse grande (p. 50). E em Bernardo, graças à imaginação infantil, temos a surpresa de descobrir um «lobo mau» como personagem  de Os Maias. O que é uma homenagem ao romancista, este que em carta a Ramalho Ortigão disse ter deixado naquele romance tudo o que tinha no saco. Oiçamos o sujeito poético: «o meu filho/ tirou-me das mãos/ o livro/ sem me dar hipótese/ tirou-me os maias/ das mãos/ e leu à irmã/ todo cheio/ de certezas/ que/ o lobo mau/ estava a jogar à bola/ e que/ de repente/ passaram-lhe uma rasteira» (p. 71).

Um poema que, se bem o entendemos, combina a temática de AMV com o questionamento do próprio fazer literário é «regionalismo em rosanna arquette». Trata-se da questão do local e do universal de reconhecido interesse nas reflexões sobre a literatura. O texto poético parte de um acontecimento aparentemente comum, a sessão de apresentação de um livro do autor. Porém, na terceira estrofe tudo se começa a adensar no discurso da pessoa que apresenta. Fala o sujeito poético: «oiço dizer/ que eu/ nos livros/ nos que escrevo/ sou universal/ da minha terra/ e que se calhar/ (valha-nos esse se calhar)/ um autor/ famoso/ norte-americano/ também nos livros/ nos que escreve/ é regional/ de nova iorque». Certamente que Aquilino Ribeiro e Alves Redol, sendo regionais das Terras do Demo e do Ribatejo, são escritores universais ao suplantarem o local na criação de personagens cujas características humanas pertencem a todos os lugares. O mesmo pode ser dito em relação a AMV de Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade e a Paul Auster da Trilogia de Nova Iorque. Escritores regionais dos seus lugares (Monchique, Nova Iorque), mas, pelas razões expostas, escritores do universal, embora de universalidade diferente. Camilo não é tão universal (no sentido de ser conhecido) como Eugène Sue, nem Eça como Balzac, pela razão óbvia de serem naturais de Portugal e terem escrito em língua portuguesa. O que parece claro é que a universalidade pertence à condição literária, aquela em que se vai além do particular para tocar nos grandes sentimentos dos homens e das sociedades. Assim, de um simples acontecimento comum (sessão de apresentação de um livro) chega-se a um poema-ensaio, misturado de ironia, em que entram a actriz Rosanna Arquette, o cineasta Martin Scorsese e outros artistas regionais ou universais do filme Nova Iorque Fora de Horas. O assunto é interessante. AMV depois nos dirá quem apresentou o livro.

Nestas notas, consideramos ainda o poema «cobras gigantes» (pp. 65 e 66) em alguns dos seus tópicos fundamentais: a natureza devastada pelo fogo, a vida latente entre as cinzas, o renascer e a identificação com a terra e o mundo natural: «paro no montado/ devastado pelo fogo/ e vejo/ um sinal de vida/ lá no alto/ de um dos sobreiros/ maiores/ um ramo verde/ que surgiu». E na estrofe seguinte: «ardido e mais ardido/ o sobreiro sabe/ ele próprio/ reinventar-se/ ele e muitos outros».

Além da aparente simplicidade de Caeiro sobre a natureza – «Não sei o que é a Natureza: canto-a» –, reconhecemos em Voar os perigos a que ela está exposta por incúria ou maldade dos que a não amam. Esta verdade é um tópico presente nos três livros de poesia de AMV.

[Texto: Manuel Matos Nunes]
7 de Abril de 2023