Uma sinfonia literária que deslumbra e enfeitiça

Texto de Américo Telo, de suporte à intervenção em Marmelete (concelho de Monchique), numa apresentação do livro de poesia Um Tributo a Monchique (ed. On y va), de Paulo Rosa (20 de Novembro de 2022).

 

Este tributo a Monchique, de Paulo Rosa, assume-se com uma verdadeira sinfonia literária, na medida em que nos surpreende com vários ritmos e andamentos, que deslumbram e enfeitiçam pela beleza. Somos seduzidos por um fio condutor de saberes e sentires, numa urdidura, a vários ritmos e cadências, temperada pelo encantamento do autor com Monchique.

E para se escrever uma sinfonia literária, neste caso sob a forma de poema, necessário será escutar-lhe a música das palavras, aspirar-lhe o aroma das ideias e, depois de o vestir com a neblina da metáfora, com salpicos de riso ou tristeza, saudade ou melancolia, inveja, amor, ódio ou agonia, ter em conta que só o sal do suor é que lapida a gema. Uma gema que é, segundo o autor, «o resultado de um esforço baseado na consciência do dever de ajudar a preservar os termos, conceitos, modos de fazer, situações e personagens do teatro da vida local que a decorrência do tempo e a mudança dos hábitos, valores e paradigmas ameaçam riscar da memória».

Paulo Rosa já nos havia brindado, em 2019, com um primeiro livro de poesia, O Perfume da Esteva, versando sobre a caça e a natureza. Agora, este seu Um Tributo a Monchique almeja ser uma homenagem às suas raízes, «que nos mostram em cada momento onde pertencemos», sendo «apenas um olhar, algo deslumbrado, sobre esse lugar primordial».

Num percurso de 51 poemas, exalta-se a Serra de Monchique e a Foía e a viagem prossegue pelo Plátano do Barranco dos Pisões, pelo Largo dos Chorões, pelas Caldas de Monchique, pela Igreja Matriz e pelo Convento de Monchique. Mas não deixaremos também de reparar no medronho, nos cogumelos, nas águias-de-Bonelli, no lince-ibérico, que talvez possa ser avistado pese embora o drama da sua extinção.

E, pelo meio, a viagem é pontuada por memórias de algumas das personagens locais, como o senhor Fernando da sapataria, o «Cigano da Pomba» (e a sua irmã), o Ti Vega, os velhos da Fonte Velha, o Venturinha dos trovões, o vizinho agricultor, com 90 anos, o Ti Manel Mil-Homens, o Zé Luís, o Zé do Corgo do Vale e o Silva Carriço, sem esquecer o senhor Torrinha, caçador que trazia o chumbinho todo para casa. Surgem-nos ainda outras personagens presentes nos poemas A fenda na mobília da viúva (p. 12), A chibatada do regedor (p. 21), Ao ti Sobreiro (p. 22), A velhinha das muletas ou Rua Prior Francisco Jorge de Melo (p. 35), No calor da taberna (p. 36), Suicídio por negligência (p. 43), Festa dos setenta (p. 45), Para não chegar atrasado à missa (p.51) e A força da fé (p. 52). São poemas em forma de soneto, em que o autor nos revela estados de alma, de exaltação do valor humano de algumas pessoas, destacando particularidades e singularidades. Cultivando a ironia, nalguns casos a mordacidade, noutros expressando a sua amizade e a sua admiração por determinadas pessoas, mas acima de tudo revelando ser alguém com um sentido de humor e de observação por vezes acutilante.

Marmelete tem neste tributo também a sua homenagem, uma vez que o poeta fez questão de registar três conterrâneos desta freguesia, a quem presta homenagem sob a forma de soneto, evidenciando particularidades e singularidades às quais a sua sensibilidade não ficou alheia.

É o caso do Zé Luís (p. 20), vendedor de pão e de amendoim e que, na sua habilidade de bom comerciante, utilizava a boa disposição como arte de vendas, mas sem ofender e sendo bem aceite:

 

Chamava cabranito a toda a gente

A vender pão e amendoim torrado

Na triste situação escudado

De ser louco, aleijado e indigente.

 

Mas um dia, no forno, eis de repente

Um freguês distinto, engravatado

Que provou o amendoim e agradado

O sabor elogiou, em tom ardente.

 

– Sim, é bom para cabrões, é o melhor…

– Olhe que sou juiz, homem de Cristo!

– Não sabia, sou doente, ó meu senhor!

 

E olhe a minha perna, já viu isto?

Mas uma coisa é certa, senhor doutor:

Não há um cabrão que não goste disto.

 

Mas para além de Marmelete ser uma terra de gente trabalhadora e honrada, também é uma terra em que as pessoas cultivam a poupança ainda que para isso tenham de se privar de alguns prazeres e mordomias. E, como que a justificar esta feição, o poeta destaca estas qualidades de um dos seus, de outrora:

 

Tinha o senhor Torrinha o feitio

(E qualquer um tem o direito a ter o seu)

De poupar, de poupar como um judeu

Mas judeu tão poupado, nunca se viu.

 

Só que a alma do avaro, ao arrepio

Da pulsão de juntar o resto ao seu

No vício fútil da caça adoeceu

Embora voltasse de cinto vazio.

 

 E os vizinhos a sorrir de malvadez

Inquiriam-no à chegada, por causa

De nunca pendurar pêlo nem asa:

 

– Que matou, senhor Torrinha, desta vez?

– Não cacei nada e que mal é que fez?

Trago o chumbinho todo para casa.

 

Sendo bons trabalhadores, bons promotores dos produtos da sua economia e comerciantes, reparamos que as pessoas de Marmelete também podiam sofrer de maleitas e achaques para os quais nem sempre a medicina convencional tinha respostas.

A história dos barbeiros, para além de tratarem da higiene pilosa dos seus clientes, e de serem lugares de confessionário e convívio entre clientes, está também ligada a algumas práticas médicas como «arrancadores de dentes». Refira-se que o «Barbeiro-cirurgião era uma das profissões mais comuns na área médica durante a Idade Média, que eram geralmente incumbidos do tratamento de soldados durante ou após batalhas. Nesta época, cirurgias em geral não eram realizadas por médicos, mas por barbeiros, que também faziam pequenas cirurgias nos ferimentos dos camponeses e sangrias» (fonte: https://seducintec.com.br/).

Será nesta tradição que, na freguesia de Marmelete, vamos encontrar o barbeiro José Miguel Tiago, nascido em 1916 e falecido em 2000, mais conhecido por Zé do Corgo do Vale, a quem o poeta (p. 44) exalta, em soneto, as suas virtudes curandeiras:

 

Ganhava honestamente a sua vida

A receitar unguentos e mezinhas

E a tisanas de inócuas ervinhas

Tratava a maleita mais pervertida.

 

Fosse picada d’alclara mais dorida

Bicha, vespa, aranha e abelhinhas

Nervo torcido, língua de vizinhas

Praga, mau-olhado, espinha caída.

 

E o negócio corria de feição

Alimentando a carteira e o bucho

Com moedas e enchidos de eleição.

 

Muitos vivos bisaram o cartuxo

E como nenhum morto faz reclamação

Convenceu-se o bruxo de que era bruxo.

 

As pessoas a quem o autor/ poeta presta o seu tributo apresentam-se assim como que pinceladas humanas de uma paisagem que ele descreve, homenageando a serra de Monchique, com uma mestria de palavras que revela um profundo sentimento de pertença a este seu colo e regaço, numa comunhão tal que quando se afasta dela – serra – sente Saudade (pág. 64), recordando:

O aroma do pão a sair do forno/ O sabor incomum, particular da farinheira/ O toque no ombro do amigo de infância/ A sinfonia que a Natureza compõe na manhã clara/ O deleite de olhar a serra verde na redoma azul, sendo esta uma paixão que Só de longe/ Os olhos conseguem ver/ As letras com que se escreve/ A palavra saudade.

E esta é uma saudade que alguém poderá comparar com as saudades que se sentem da mulher amada, ou do homem, e que queremos ter sempre por perto, ou não fosse ela, a serra de Monchique e apresentar como Duas mamas eretas, túrgidas/ encimadas com mamilos de sienito nefelínico. Refere-se o autor à Fóia, com 902 metros de altitude, e à Picota, com 774. E contemplando embevecido uma delas, a Fóia, o poeta exalta-a como a minha princesa do Sul/ Que dessa torre de menagem em que te ergues/ Espreitas o Algarve pelo ombro da irmã/ E descansas o olhar no Alentejo/ Imenso, ajoelhado em teu louvor.

Mas este tributo é, acima de tudo, e também, um convite do poeta para que, assumindo uma qualidade de cicerone, ou quiçá, de guia turístico, com inspiração poético/ literária, façamos uma visita a Monchique.

Se bem que o possamos encontrar a meio do conjunto do seu tributo, na página 42, sugiro a quem queira seguir o roteiro da viagem do poeta que comece assim pelo Largo dos Chorões, que o seu olhar divisa como situado Numa concha de serra bordada a casario e que no acolhimento da casa, que é Monchique, aos que aqui vivem e aos que nos visitam, se constitui como que sendo a casa de fora do concelho/ Quase fórum, quase rotunda, quase sala/ Lugar de festa, de encontro e de partida.

Após a receção do visitante na casa de fora do concelho (o Largo dos Chorões), o percurso poderá fazer-se pela urbe patrimonial da vila, apreciando o declive das suas ruas, os perfis de algumas construções mais apalaçadas em arquitetura chã portuguesa, mas onde pontua a Igreja Matriz que, segundo o poeta «Beija na morte o ateu que não a abraçou em vida (p. 59), exaltando-se assim um ecumenismo de que hoje se faz apanágio.

E porque não também uma visita pelas Escadinhas da Boavista, onde encontraremos a sapataria do senhor Fernando (p. 13)? Ela ainda é, por enquanto, um tributo às muitas das artes que outrora existiram em Monchique. Quer localizadas na vila, quer no meio rural, de uma economia que tinha na agricultura e produção florestal os seus alicerces. E Monchique era uma terra em que Havia muitos sapateiros no tempo/ Em que as crianças andavam descalças/ E que o couro epidérmico tão rijamente endurecia/ Que cesariavam os ouriços a calcanhar». E Na sapataria do senhor Fernando/ Que não era então a sapataria do senhor Fernando/ Quarenta sapateiros e seis sapateiras/ Colhiam o pão da boca/ E bebiam o vinho, pelos pés/ Reconfortados do freguês».

Da vila, segue-se normalmente uma ida à Foia, que o poeta exalta como a sua princesa do sul e torre de menagem.

De seguida, como que num mergulhar na serra a que pertence, o poeta/ cicerone deixa-nos a sugestão para que se faça uma passagem pelo Barranco dos Pisões, um aconchego de verde roubado ao Paraíso, onde pontua um vetusto lenho, avô de bisavós, referindo-se ao seu mais frondoso plátano de onde ao lançarmos o olhar tronco acima/ Caem flocos de céu azul ramos abaixo.

Seguimos para as Caldas de Monchique (p. 47), abençoadas da memória dos romanos, retiro sagrado dos folguedos/ Dos piqueniques de domingo e feriado/ Do início de namoros e traições/ À sombra de gigantes coando o sol.

A viagem do autor faz-se ainda, e também, pelas memórias do Convento de Nossa Senhora do Desterro (p. 24), que fica lá em cima onde Pero o sonhou, contemplando a luxuriante paisagem que vai até ao Pomar Velho e que tendo vivido mais na morte que na vida, ensinou talvez a ler e a contar, a escrever a rezar e temer mas que hoje é vaidade envergonhada/ Filho da esperança desiludida, a que todos acenam mas ninguém abraça.

E neste percurso turístico surge-nos também a aldeia de Casais (p. 54), onde o poeta fez a escola primária, e que hoje vê assim: O tempo desatou o abraço dos casais/ Já não guincha a pequenada nas vielas/ Nem mexericam das vizinhas/ As vizinhas como dantes. Há, no entanto, uma esperança de que um dia Casais volte a crepitar de sangue e de alma na estrada do futuro.

Como que a merecer também uma visita pela mão do poeta é também no Alferce (Al-Faris, p. 56) que se situa uma construção casteleja, o sítio arqueológico da Pedra Branca, que foi prantado em vigia/ Em alto pouso ajeitado/ Numa singela candura/ Com um manto de verde sobro.

 

As riquezas de Monchique

A Natureza de Monchique exalta também uma comunhão em que na Serra/ Até quando as aves cantam/ O riacho rumoreja/ E a brisa por entre as folhas/ É a pedir silêncio (p. 10). E vivendo na serra concluímos que o trabalho que dá a subir é compensado pelo repouso do descer (p. 53). E tudo se comunga nas luas de Monchique (p.63), que exaltam o lado romântico dos seres, sobretudo na lua cheia, se bem que ela, quando visita Monchique, faça uma visita de médico, fugaz, segundo o poeta.

Pese embora a visita fugaz da lua cheia, tudo parece ser compensado pelas riquezas de Monchique. Em que pontua desde há largas dezenas de anos a cortiça, como um simbolismo do que é a produção florestal da serra. Diz-nos o poeta (p. 55): É bom o aroma da cortiça nova empilhada/ Tem notas de pão farto e vinho fino. Além da cortiça, que como uma ave das patacas povoou Monchique e merece também lugar de destaque (p. 61) na economia local, temos uma árvore que chegou de longe, o eucalipto, Alto, vigoroso, porte dominador/ (A imitar futuros migrantes do Leste)/ Ave das patacas que em todo o lado pousou/ E nunca tão fecundo vegetal nos visitara/ E generoso, durante cinquenta anos.

Apesar das discussões em torno do valor do eucalipto, que alguns consideram persona non grata mas que para os habitantes de Monchique é fonte de riqueza, geradora de emprego e de poupança – tudo o que um velho precisa para os filhos terem –, outros bens naturais coexistem ainda como os valores da sua Natureza e da Fauna, onde pontuam a águia-de-Bonelli (p. 37), Discreta e furtiva no ar e bosque/ Como se de modéstia o seu poder se travestisse/ A princesa perdigueira caçadora. E o lince-ibérico (p. 38), ameaçado de extinção mas que Aqui no liberne, caldeou a mãe Natureza/ Com um saber feito a punho de evolução/ A força, a elegância, o porte, a desenvoltura/ E ensaiou a estupidez o drama da extinção.

Menos apreciada poderá ser a víbora cornuda, mas ela como que representa a singularidade da fauna selvagem de Monchique, pelo que podemos considerá-la um património faunístico da serra. Conclui o poeta (p.39): Mas de alguma coisa, contudo, servirás/ Que a Natureza passo em falso nunca dá/ Talvez a toxina, ao jeito que Midas faz,/Transmude em cura o que é peçonha má.

A terminar esta viagem, o poeta/ cicerone de Monchique destaca, ainda no prodígio das riquezas, o medronho (p. 30), cepa eterna que aqui tem o seu cantão e que Já foi fiança de pão, na serrania.

E caminhando pelo pontuar de substâncias e memórias, é na sua Ode à vila que o autor nos conduz, ao longo de 302 versos, (a Ode triunfal, de Álvaro de Campos, tem 240), apresentando como que uma síntese final de chegada de todas as viagens anteriores neste regaço a que ficamos Presos por laços emocionais, quais raízes que nos mostram em cada momento onde pertencemos.

Uma ode expressa admiração por algo ou por alguém, e esta Ode à vila é uma descrição evocativa mas exaltada, que combina recursos etnográficos e antropológicos com recursos estilísticos descritivos que sintetizam a peregrinação por Monchique que o livro nos oferece.

Por lá encontramos – recomendo uma leitura atenta – referência a tudo o que constitui as nossas raízes e a nossa cultura, desde profissões e modos de ganhar a vida até aos valores da natureza, produções da economia local e paisagem de Monchique, sem esquecer as tradições e a religiosidade. As menções aos castanheiros, aos peros de Monchique, ao milho, à batata, ao porco, aos figos, às aves, aos sobreiros, aos cogumelos (com 24 versos), às abelhas, aos sistemas de rega, tudo isso é como que um ajuste de contas afetuoso e rendido à terra do poeta, elevando-a e de forma tão despida como poucos ousaram fazer (José Alberto Quaresma, 2022) e que eu duvido que consigam vir a fazê-lo.

Em conclusão, deixo um desafio:

– Uma obra literária, depois de publicada, e apresentada, deixa de pertencer a quem a escreve, e nós, ao lermos e relermos esta sinfonia literária, faremos também a nossa singela homenagem e prestaremos o nosso Tributo a Monchique. Que é fonte e sede do pó de onde viemos e que se faz presente todos os dias, revelando as raízes e modos de ser e de sentir dos monchiqueiros.

[Texto: Américo Telo]