Aconteceu comigo

Texto de Eduardo Jorge Duarte, de suporte à sua intervenção em Viseu durante uma tertúlia a propósito dos seus livros Montanário, Uma Coruja nas Ruínas, O Intervalo entre o Raio e o Trovão e Gralhas (ed. On y va), apresentados pela psicóloga Ana Pais. A tertúlia realizou-se na noite de 3 de Dezembro de 2022, no espaço Café com Letras.

 

O ponto de partida para a mudança pode ser uma ausência, uma carência, uma falta que leva à insatisfação exacerbada pela curiosidade. Insatisfeito com a vida que levava, D. Quixote quis saber como era viver na primeira pessoa o papel de cavaleiro andante. Chamaram-lhe louco. As saudades de casa e da família motivaram Ulisses a deixar Ogígia e os cuidados libidinosos da deusa Calipso e a empreender uma heroica viagem de regresso a Ítaca. Inadaptado a uma vida em terra firme, Ismael, personagem do Moby Dick, queria voltar às lides do mar e conhecer a baleia branca. Santiago, de O Velho e o Mar, queria provar a si mesmo que, apesar da velhice, ainda era capaz de no mar alto apanhar um grande peixe.

Quando se acumula leituras durante a infância e a juventude e se regressa a elas com voraz afinco no princípio da idade adulta, pergunta-se o que se pode fazer com elas, sobretudo quando se tem a consciência de que a qualidade daquilo que se escreve pode e deve acompanhar a quantidade de livros que se lê.

Foi o que aconteceu comigo. A dada altura, ao reler um documento escrito no âmbito profissional, apercebi-me da dificuldade que aqueles que o quisessem ler teriam para decifrá-lo. Isso representou uma primeira pista para tomar consciência de que colocarmo-nos no lugar do outro é, acima de tudo, perceber o que esse outro tem para nos dizer.

Admitindo que escrevia mal e que, sendo a escrita uma forma de expressão, quem me lesse, fosse qual fosse circunstância, teria dificuldade em compreender-me em virtude das minhas insuficiências, admitindo isso decidi juntar às leituras o exercício continuado da escrita. Pus então em prática a máxima de Platão quando disse «faz o que te compete e conhece-te a ti mesmo». E não há melhor forma de fazê-lo do que começando por escrever à volta daquilo que nos é mais intrínseco e mais real. Nessa altura, decidi criar um diário sobre a minha vida em Monchique.

Foi nesse labor quotidiano e incansável que aprendi que caminhar é ler com as pernas, que todo o Norte é um Sul visto de costas e que é possível a um homem ter um metro e setenta de altura e novecentos e dois de tamanho. Ao que para o geógrafo era território sagrado, juntava-se agora o que a poesia trazia de profano. Se na amizade com uma árvore, a senhora Araucária, podia afundar mais as raízes, nos ramos mais altos podia alargar os horizontes para o mundo. Surgia, então, o Montanário, um livro que não quer colocar Monchique no mapa da literatura. Esse feito já o haviam alcançado Manuel do Nascimento, António da Silva Carriço ou António Manuel Venda, hoje aqui connosco. Quando muito, este diário das montanhas junta a essas coordenadas bibliográficas outros elementos como curvas de nível, pontos cotados, linhas de água, rede viária e manchas de vegetação que, à sua maneira, se não dão a conhecer uma certa ideia de Monchique, ajudam a revelar-lhe a dimensão onírica e as feições.

Esqueçamos esse logro romântico da mão que escreve sozinha, esse sofrimento infligido pelas personagens, o texto que vem não se sabe de onde. O que há nestes livros é sobretudo um trabalho que parte do princípio defendido por Javier Cercas de que «a realidade mata e a ficção salva», enraizado numa premissa real explorada pela imaginação. Não há talento. Nestes livros, em especial no Uma Coruja nas Ruínas, há um aproveitar por parte da imaginação das migalhas caídas das leituras que fiz dos autores neo-realistas e do mestre Faulkner. Ao compromisso estético soma-se um compromisso ético, e daí nasceu um conjunto de histórias cujo chão firme de onde se levantam é sempre um facto acontecido, uma experiência, uma pergunta relativamente a questões com as quais convivi de perto desde criança.

Se os contos deste livro fazem perguntas, não é respostas que pretendem, mas sim apurar, refinar, lapidar essas perguntas num mundo que parece não querer fazê-las ou não estar a acertar nas questões que coloca a si mesmo com receio de se confrontar com a sua vulnerável nudez. Um mundo que não se inquieta não se move, fica a ver-se acontecer na sucessão cósmica dos dias.

Dessa inquietação nasce um contributo para as questões essenciais a que toda a arte tenta aceder: quem somos, o que somos, o que queremos fazer com as nossas vidas? Dessa inquietação surge a necessidade da utopia e da transformação. Dessa turbulência surge a poesia, a parte visível do impossível quando começa a revelar-se possível. Tanto n’ O Intervalo entre o Raio e o Trovão como no Gralhas, livros irmãos ligados por versos comunicantes, encontram-se poemas que reforçam a ideia de um território de empatia e de alteridade em que procuro conhecer e compreender o outro conhecendo e compreendendo os muitos outros que vivem dentro de mim.

Em todos estes livros, com todos os seus defeitos, as suas contradições e as suas limitações, há trabalho, insisto. Um trabalho, uma luta contra todo o tipo de muros, de preconceitos e de tentativas de cercear o maior dom que nos é dado à nascença: a liberdade.

Nesse sentido, se de alguma forma a superfície baça e nebulosa de uma frase ou de um verso de um dos livros hoje falados espelhar a humanidade dos leitores aqui presentes, e por via da inquietação os incitar a uma pequena mudança em direção a um mundo melhor, os gratos dias de escrita terão por certo valido a pena.

[Texto: Eduardo Jorge Duarte, 3 de Dezembro de 2022]