Da «planície mais bela» à «serra dos dinossauros»

Texto de Manuel Matos Nunes, escrito em Junho de 2021, sobre o livro de poesia Barcelona (ed. On y va), de António Manuel Venda; Manuel Matos Nunes, formado em Economia e em Línguas e Literaturas Modernas e com um doutoramento em Estudos de Literatura, é poeta, participa em projectos de estímulo à leitura e é investigador adjunto da Direcção do Centro de Estudos Regianos, de Vila do Conde

 

Diga-se desde já que Barcelona não é um livro de poesia sobre a capital catalã. O título é o do seu primeiro poema, no qual se predica um sentimento dual de apego à terra e apelo à viagem, o sujeito poético olhando do seu monte «no meio da planície/ mais bela» os aviões que a grande altitude a sobrevoam: «em qual dos pássaros/ pequeninos de metal/ poderia estar/ então/ se tivesse decidido/ precisamente/ nesse dia/ viajar para barcelona». O último poema, «perto das ramblas», também de sugestão barcelonesa, é uma viagem pela memória, como outras de outros poemas.

Mas atente-se na epígrafe do livro, de Daniel Maia-Pinto Rodrigues: «Por onde passas descoses o tempo/ deixas aberto/ o princípio do sonho.» Em termos literários, a epígrafe é um elemento paratextual que desempenha, ao lado de outras funções – como a ideológica e a reverencial –, a de introduzir o leitor nos temas tratados no texto. Esta é seguramente uma epígrafe temática, embora os temas do livro a ultrapassem.

O descoser do tempo surge em vários textos de Barcelona como elemento determinante do princípio do sonho, a dimensão íntima e vital da poesia. Um bom exemplo é o poema com o título «para te encontrar de novo», em que o sujeito poético confronta passado e presente, datando-o do dia em que ocorre a morte do actor que interpretou o papel de xerife num filme de princípios dos anos oitenta: «escrevo no mesmo dia/ em que morreu/ um actor/ norte-americano/ que fez de xerife/ de uma pequena cidade/ no primeiro filme/ do rambo».  O sonho («Pelo sonho é que vamos», verso de Sebastião da Gama) não só se expressa no título do poema, como aflora no seu corpo de versos: «teria de recuar/ até à adolescência/ para te encontrar de novo» e «lembro-me de ter pensado/ se um dia/ tão mais à frente/ na vida/ estaríamos os dois/ assim agarrados/ uma mão na outra/ e acreditei que sim/ e estava feliz/ acreditando que sim». A par do tempo, está presente no poema a dimensão espacial, registando-se alusões à Praia da Areia Branca e à «serra dos dinossauros», esta recorrente em outros textos, tanto deste livro como do anterior de António Manuel Venda, com o título O Cão Atravessa a Cidade (ed. On y va, Fevereiro de 2020).

Se esta temática é directamente reconhecível nos textos poéticos de Barcelona, deve-se notar que uma boa parte dos poemas se centram naquilo a que poderemos chamar o real concreto, tanto no que concerne à paisagem, com os animais e as árvores que a povoam, como no que respeita à problemática da sobrevivência das propriedades rurais e à insensibilidade do poder em relação a isso. Barcelona é, assim, um livro ligado à terra e ao amor por ela, à terra enquanto berço (a «serra dos dinossauros») e enquanto mãe da vida com as suas árvores, searas e animais. E, entre isto, há o flagelo dos incêndios florestais que assolam as serras e os campos, dos quais o autor nos dá um testemunho comovente em Uma Noite com o Fogo (ed. Quetzal, 2009; ed. On y va, 2018 e 2019). Em Barcelona, veja-se o poema «o monstro e a cobra»: «recordo particularmente/ uma das vezes/ em que o fogo/ atravessou/ a serra dos dinossauros».

O amor à terra e a persistência em não a abandonar expressa-se de forma liminar no título «anjos ancorados», sendo explicitamente assumida no poema: «essa corda invisível/ da âncora/ prende alguns anjos/ a esta terra triste/ para que não se afastem/ para que não se ponham/ com ideias de ir atrás/ de qualquer peixe/ que lhes pareça/ mais agradável/ ou de alguma sereia/ que goste/ de ser perseguida». Também aqui as sereias que tentaram desviar Ulisses da sua rota para Ítaca vão trabalhando para a perdição dos anjos da terra não munidos da sua âncora. No fundo, estamos perante as magnas questões do abandono das áreas rurais do interior que tanto preocupam (ou parecem preocupar) sociólogos, economistas e políticos, mas que afinal sempre foram sentidas pelos poetas, mesmo os da Antiguidade. Dê-se a palavra a Virgílio, Livro I das Geórgicas, tradução de Agostinho da Silva:

 

          Já charrua nenhuma merece honras

          e pobres vão as terras de cultivo,

          sem qualquer lavrador, se fundem foices

          para que espada rígida apareça.

 

O amargo elogio da terra e do trabalho nela desenvolvido pelos que se recusam a abandoná-la assinala-se em poemas como «poema da máquina de roçar» e «na estante dos livros melhores». No primeiro, o estrépito da máquina de roçar, empunhada pelo sujeito poético, perturba e confunde os javalis que procuram a sua subsistência nos campos. Trata-se de um trabalho duro e de sacrifício, mas necessário para a manutenção do bom estado das terras: «acho que nunca/ me senti/ tão sujo como hoje/ calças de ganga verde-erva/ calças super-rotas/ as botas/ cheias de porcarias/ a pele nem imagino/ de que cor/ o cabelo meio cabelo/ meio erva seca/ e as mãos/ num estranho tremor/ que dura quase meia hora/ depois de desligada/ a máquina». No segundo, o trabalho de poda e a fogueira que, cumprindo as formalidades exigidas pelos bombeiros, se torna necessário fazer para a queima da lenha retirada das árvores. O sujeito poético descobre entre os restos da fogueira um pequeno ramo de oliveira que permanecera intacto, sem que o fogo o tivesse consumido. Este pequeno ramo é tomado como símbolo da resistência contra a fuga dos campos, como imagem metafórica do próprio sujeito poético: «penso/ em agarrar/ no ramo/ mesmo quente/ e ficar com ele/ não como uma memória/ uma recordação/ não/ nada disso/ antes como um testemunho/ de resistência (…) sim/ vou levá-lo/ arrefecê-lo na água/ do tanque/ tirar-lhe a cinza/ e guardá-lo/ na estante dos livros/ melhores». A associação do ramo de oliveira aos «livros melhores» traduz um sentimento de apreço que comporta uma dimensão cultural. É cultura não esquecer as raízes humanas e familiares, não desprezar o legado da ancestralidade.

Este é um livro sobre a memória e o sonho, de um telurismo magoado, mas que abre ainda espaço para a sátira social e política. Disso são exemplos os poemas «ou ambas as coisas», «futuro» e «guardadas pelas árvores de braços longos», nos quais se fala de charruas de «tecnologia espanhola», de uma «vereadora responsável/ pelo pelouro da cultura» e de um maioral e um cão – saídos talvez de outro livro do autor – «que foram dar à cidade» na mira de uns subsídios à agricultura e de outras «coisas/ mais terra-a-terra».

Uma mensagem lavra em Barcelona contra o esquecimento dos campos e dos que neles vivem. Da «planície mais bela» à «serra dos dinossauros» poderá o homem da roçadora, poderão os javalis, os grilos, as felosas e as ginetas continuar a ser motivos dessa alegria magoada de se fazer poesia? Ou será que amanhã mais nada restará para além de abandono, esquecimento e morte, como no poema de Rui Lage cuja primeira estrofe aqui se cita (Estrada Nacional, «Confissão póstuma de um tal que traiu os antepassados», IN-CM, 2016)?

 

         Perdoai-me, antepassados, perdoai-me avós

          porque embruteci como penedo e tive medo

          do vento, e receei não ter sustento;

          porque pastoreei pedras, ordenhei o ar

          e cortei lenha para me queimar,

          porque estou cheio de míldio e comi sulfato;

          perdoai-me porque plantei e não colhi, mas antes me diluí

          em estéticos, iludidos regatos,

          porque quis regressar mas quando regressei estava tudo morto.

 

[Texto: Manuel Matos Nunes]