Uma montanha sempre no horizonte

Texto de Margarida Rendeiro, de suporte à apresentação em Lisboa (Academia de Recreio Artístico – Junta de Freguesia de Santa Maria Maior) de Montanha Distante, romance de António Ladeira (ed. On y va), a 21 de Dezembro de 2020; Margarida Rendeiro é professora auxiliar na Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora integrada no CHAM – Centro de Humanidades, uma unidade de investigação inter-universitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores

 

 

O meu primeiro contacto com a escrita do António Ladeira foram os dois interessantes livros de contos Os Monociclistas e outras histórias do ano 2045 e Seis Drones: novas histórias do ano 2045, ambos publicados pela editora On y va em 2018, e que tive a oportunidade de ler e trabalhar a minha leitura num artigo que apresentei na Universidade Sorbonne Nouvelle e publiquei no volume PHI (Proportion, Harmonies, Identities) subordinado ao tema Intelligence, Creativity and Fantasy em 2019. Não obstante o meu interesse por distopias (e, consequentemente, pelas distopias escritas em língua portuguesa, que continuam a fazer parte de um reduto pequeno, mas resiliente, no mercado editorial de língua portuguesa) poder ter dado o impulso inicial para me deter naqueles dois livros, é certo que aquelas histórias me impressionaram por fazerem uma leitura da sociedade contemporânea e, particularmente, de algo que, normalmente, nos entusiasma: as novas tecnologias. Estes livros de contos profundamente distópicos mostravam, entre outros aspetos, no entanto, que quando implementadas de forma extrema as novas tecnologias questionavam a capacidade de obediência absoluta do ser humano em termos de longa duração, condicionando a sua criatividade inata. Para além do mais, tratava-se de um futuro preocupantemente próximo (ao contrário de outras distopias, como o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, escrito em 1932 e que projetava um mundo em 2540, ou mesmo o 1984, de George Orwell, que o escreveu em 1949). Em Montanha Distante, agora lançado e que é a razão de estarmos aqui hoje, o futuro não tem data, pelo que podemos dizer que, de certa maneira, o futuro é também hoje e a reflexão que dele fazemos tem de, necessariamente, passar por uma reflexão sobre os tempos em que vivemos. E, deste modo, agradeço em particular ao António Ladeira e à editora On y va a oportunidade de apresentar este livro e de aproveitar o momento para refletir sobre os nossos tempos numa viagem que vai de Vila Ideal para Vila Real ou, porque não dizê-lo, numa viagem que nos mostra que os limites de um certo idealismo se esbatem numa realidade política contemporânea, marcada pela mesquinhez e pela mediocridade.

De uma forma muito resumida – e principalmente porque o meu intuito é estimular caminhos de leitura e não desvendá-la –, a narrativa inicia-se quando um motorista de táxi, particularmente conversador, se predispõe a levar um passageiro, particularmente calado, num trajeto que se estima que demore seis horas, entre Vila Ideal e Vila Real, duas urbes que se localizam numa geografia que, iremos descobrir, inclui pelo meio a Vila Nublada, a Vila Equidistante e as Vilas Contíguas. Ponto de partida e ponto de chegada têm, cada um, a sua montanha: Vila Ideal tem vista para a Montanha Próxima e Vila Real para a Montanha Distante, título desta narrativa, uma montanha imponente com o pico a perfurar uma nuvem como um donut (uma descrição que desperta a imagética de sonhos que vai dos filmes da Paramount Pictures à promoção de viagens, como por exemplo ao Pico dos Açores). A viagem entre estes dois pontos é a oportunidade para o motorista – o narrador de Montanha Distante, homem com idade que ronda os 60 anos – empreender uma outra viagem de rememoração sobre os últimos 40 anos da sua vida, desenvolvido num discurso testemunhal na primeira pessoa, em jeito de solilóquio dirigido ao jovem de cerca de 20 anos que ocupa o lugar de passageiro. Poderia ser a passagem de testemunho de um pai para o filho (mas não é!) porque esta é a fala da experiência, a memória de um passado que avisa o presente.

Vila Ideal e Vila Real constituem dois extremos de um espaço onde vive uma comunidade organizada numa estrutura hierárquica em cujo topo se encontra o Querido Líder e a sua família e em que toda a vida familiar e social se organiza para se espelhar e engrandecer nos valores promovidos pelo Querido Líder, sendo esta missão o reflexo de uma cidadania exemplar. No envolvimento nesta causa comum imposta e encorajada enquanto modo de vida, não resta margem de desenvolvimento para a vida pessoal, entendida como espaço íntimo e individual, a esfera privada onde se manifestam os nossos desejos, aspirações e devaneios. A privacidade é vista como potencialmente subversiva porque é o espaço em que o indivíduo se desvia do seu dever patriótico de honrar permanentemente os fundadores do Reino e louvar o Líder, o garante máximo dos valores do Reino. Não existe qualquer sombra de oposição a este Líder porque os indivíduos são sistematicamente vigiados e acompanhados em todas as fases da sua vida para que se possam tornar em cidadãos exemplares do Reino.

A centralidade da figura do líder – e da sua família – na vida política e social destas vilas (o termo «vila» refere-se a um aglomerado mais pequeno, próximo e, consequentemente, mais humanizado do que «cidade») suscita-me uma reflexão – por via de comparação – sobre a chamada «onda populista» que se tem espalhado pelos Estados Unidos, pelo Brasil e também por vários países da Europa e que se destaca pela centralidade de uma figura, o líder, que se apresenta como defensor dos interesses do povo, com um discurso de forte teor nacionalista e cuja política assenta em medidas que vão contra os princípios democráticos e que tem um lastro histórico. Num artigo publicado recentemente, e fazendo uma abordagem semiótica ao desempenho e ao sucesso atual de líderes populistas, tais como Bolsonaro, Trump ou Órban, Eric Landowvski realça que pelo facto de muitos se posicionarem como pessoas vindas de fora da esfera político-partidária, e consequentemente como vítimas ou observadores dos erros e injustiças do sistema político, sendo eles «parte do povo», é a sua imagem pessoal que prevalece sobre o conteúdo das suas propostas. Interagindo, por exemplo, nas redes sociais num registo particularmente coloquial, focam a sua comunicação de forma a exacerbar os sentimentos dos eleitores. A componente afetiva é essencial ao ethos populista: a oportunidade de comungar no ódio dos outros, a xenofobia, não como ideologia, mas como parte de sentimentos viscerais. A argumentação é o que menos conta; é antes o tom, o gesto, o ritmo e a dinâmica corporal do orador capaz de fazer partilhar sentimentos (como o ódio ou a exaltação da pátria) e de fazê-los viver enquanto moção somática induzida contagiosamente. Por outro lado, o talento dos líderes populistas é fazer-se passar por próximos dos seus eleitores. Landowvski identifica o tipo de regime político em que assentam estes líderes políticos: o absolutismo que coloca os sujeitos políticos sob a dependência de uma autoridade toda poderosa, cujas decisões dependem do seu próprio capricho, investida numa sacralidade laica («O pequeno Pai dos Povos», o «Grande Timoneiro» ou, no caso de Montanha Distante, o «Querido Líder») e cujas escolhas dependem do assentimento ao arbitrário da autoridade suprema. Este regime questiona a chamada democracia representativa, defendendo algo que, na prática, é uma deturpação da democracia direta, assentando num regime de interação entre iguais, e que é aproveitado para o exacerbamento da estesia, a sensibilidade de todos e de cada um e a manutenção do poder. Em Montanha Distante, a comunidade estrutura-se em função do capricho do Querido Líder que é apresentado, qual monarca investido de um poder que lhe foi delegado pela história, pelos espíritos dos líderes do passado, sendo este o garante da exemplaridade da nação (a palavra monarca que usei não é um acaso; os cidadãos das vilas são cidadãos do Reino, o que se mostra como contrassenso, dado que num reino falaríamos de súbditos e não de cidadãos). O dia nacional é o dia do Líder, com banquete, discurso oficial, hino de louvor e danças coreografadas que narram a história nacional, cujo símbolo vivo presente é o Querido Líder. Os discursos do Querido Líder são – e devem ser! – seguidos ferverosamente com muito nervosismo e emoção. Montanha Distante mostra-nos um sistema que é uma versão extremada do que Landowvski chamou de «absolutismo» dos populismos dos tempos modernos e que difere um pouco do totalitarismo porque neste regime político toda a coletividade está submetida a princípios rígidos e regularidades imutáveis assentes num pretenso conhecimento científico das leis que regem a sociedade e a economia (é da defesa de uma estrutura). E, neste caso, Montanha Distante mostra uma sociedade que diverge da sociedade totalitária de Orwell porque, tal como 1984 foi inspirado pelo presente histórico, os tempos que inspiram o pequeno romance de António Ladeira são diferentes. Os meios de monitorização e repressão – que os há e parecem ter ressonância histórica – são implementados para a preservação de uma estrutura que é personalizada na figura de um líder. Este romance constitui um excelente meio de refletirmos sobre o que é uma sociedade que se deixa enredar por discursos inflamados que vão captar as frustrações e os medos, e quase voluntariamente se organiza para continuar a dar palco, palavra e poder a quem os aproveita para se manter a autoridade.

Vivemos tempos perigosos em que determinados líderes ou protolíderes põem em questão os limites da democracia, eletrizam as massas com discursos, explorando os sentimentos viscerais, nomeadamente os de patriotismo e ódio, manipulando ao sabor do capricho com vista à manutenção do poder. Há pouco tempo, no discurso oficial no Dia Nacional dos Estados Unidos da América e uns meses antes da reta final da campanha presidencial, Donald Trump declarou: «A nossa nação está a testemunhar uma campanha implacável para apagar a nossa história, difamar os nossos heróis, apagar os nossos valores e doutrinar os nossos filhos.» Poderíamos multiplicar exemplos recentes em diversas geografias e proferidos em diferentes línguas que mostram como determinados líderes exploram a estesia dos cidadãos-eleitores, posicionando-se como protetores dos seus reinos e herdeiros das histórias nacionais.

Outro aspeto extremamente relevante é o facto de a narrativa se construir a partir de e explorar o sentimento de solidão individual, refletido na vida do conversador motorista de táxi e percebido na ausência de contraponto do passageiro ouvinte que se percebe ser anuente. Hannah Arendt defendeu, em As Origens do Totalitarismo, que o totalitarismo se sustenta no apagamento da identidade individual através do sentimento profundo de isolamento e consequente ausência de relações sociais normais, substituídas pela exploração da lealdade extrema: «Não se pode esperar essa lealdade», afirma Arendt, «a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais – de família, amizade, camaradagem – só adquirem sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao partido.» (Arendt 1973, 373) A solidão em Montanha Distante emerge do controlo esmagador do que devem ser as escolhas individuais e que, deixando o indivíduo incapaz de fazê-las, anulando a sua espontaneidade, as suas tendências e até a possibilidade de errar (que determinam a natureza humana): quer seja a escolha do futuro profissional, quer seja a escolha que se faz na vida amorosa (quem se escolhe para amar e como se escolhe amar). Os cidadãos destas vilas são indivíduos solitários, que não têm palavra própria ou que não ousam proferi-la em voz alta. A subversão reside na utilização do poder da palavra: contar, narrar, testemunhar para memória futura. Neste aspeto, penso que António Ladeira continua a ser – tal como eu – relativamente otimista. É na consciência do poder da palavra – não direi a solução, mas a esperança de escaparmos a formas totalitárias ou absolutistas de existência comunitária. O princípio da empatia, da capacidade de o ser humano interagir, dar-se ao Outro, seu semelhante –, mesmo que isso implique a violação de regras impostas e um risco para a segurança pessoal. É o gesto de empatia que a história deve registar; é neste gesto que nega uma obediência amorfa a uma estrutura em favor da consideração com o outro que revoluções podem acontecer ou que podemos impedir que sociedades como estas se organizem de vez.

Finalmente, uma palavra sobre o título, de que falei muito pouco: Montanha Distante. É uma montanha que permanece sempre no horizonte de Vila Real. No nosso caminho para uma compreensão da nossa realidade, é bom que tenhamos em vista que certas imagens que se nos afiguram sedutoras podem esconder realidades amargas. Elas continuam no nosso horizonte para nos alimentar os sonhos, decorar o nosso cenário, mas a perceção da realidade deve avisar-nos dos perigos que certas estruturas político-sociais encerram. É assim que vejo a montanha distante: uma presença constante no horizonte de que determinados idealismos não são mais do que imagens de cinema que nos fazem sonhar, mas que o nosso caminho deve ser sempre rumo a Vila Real.

 

Referências

– Arendt, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras, 1973

– Landowski, Eric. Crítica semiótica do populismo. Galáxia (São Paulo) [on-line]. 2020, n.44 [cited 2020-12-17], pp. 16-28. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-25532020000200016&lng=en&nrm=iso>. Epub July 06, 2020. ISSN 1982-2553. https://doi.org/10.1590/1982-25532020248140.

– Reis, Pedro Bastos. «Trump utiliza discurso no Monte Rushmore para inflamar divisões nos Estados Unidos». Público, 4 de julho de 2020. Disponível em https://www.publico.pt/2020/07/04/mundo/noticia/dia-independencia-trump-defende-monumentos-estatuas-ataca-revolucao-cultural-esquerda-1923060

 

[Texto: Margarida Rendeiro]