Sobre «Os Monociclistas»

Texto de Risoleta C. Pinto Pedro sobre o livro «Os Monociclistas e outras histórias do ano 2045» (ed. On y va), de António Ladeira (publicado no jornal «Raio de Luz», de Sesimbra)

 

Não sendo frequente neste livro a metáfora, como aliás sucede às outras figuras de retórica, dado que o estilo é contido, despido e sóbrio, a metáfora é formada pelo conjunto, cada conto faz parte da construção da grande metáfora que é a mensagem do livro. Sobre a liberdade ou a ausência dela, como a liberdade de criação, que é o caso do primeiro conto. Onde a essência do escritor, como ser totalmente livre, aqui aparece na sua impossibilidade.

Poderá esta escrita situar-se no género sátira, por expor os vícios ou defeitos de uma época. Já tenho dúvidas quanto à presença da ironia. A palavra vem do grego e significa dissimulação ou pergunta que finge ignorância da parte de quem a faz, à maneira de Sócrates. Aqui, poderíamos aproximar-nos deste sentido, dado que o autor conta as histórias como se desconhecesse que não se trata do futuro, mas do presente, há como que um fingir desconhecimento. A ironia pode ser associada às noções de escárnio, troça e zombaria, o que não é de todo, aqui, o caso. O assunto é demasiado grave e o desespero aflora de modo demasiado evidente. Também poderemos perguntar: que época? A data presente no sub-título, 2045, fornece uma falsa pista, enganosamente apontando para a ficção científica, o que não é, pelo menos, toda a verdade. Trata-se da época em que estamos, metaforizada pela hipérbole, e até disto não tenho a certeza. Algumas situações são já tão reais que nem chegam a ser hiperbólicas, a não ser que consideremos que o real é uma hipérbole. Jogo de espelhos de aumentar, como havia na Feira Popular. Ou talvez não. Ser escritor hoje, na sua plena liberdade, pode ter como consequência não ter leitores ou mesmo editor. É este, afinal, o tema do primeiro conto (mais actual não poderia ser). Coloca o dedo no núcleo da ferida. Que não importa muito que o livro faça o seu percurso lógico de publicação e divulgação, se o preço for o condicionamento do escritor a uma vontade que lhe é estranha.

Estes contos não são de ficção científica, mas uma metáfora do presente. Talvez pela data escolhida, afinal tão próxima, e a ausência do grau de evolução tecnológica ao nível do que esperaríamos, pois o cenário é o de hoje levado ao máximo das suas consequências, ou do seu malefício, o que nos faz pensar que estamos, enquanto sociedade tecnológica, a chegar a um ponto de saturação a partir do qual não será possível avançar muito mais, não por falta de conhecimento científico, mas por as qualidades morais humanas não acompanharem a velocidade de ponta, como seria imprescindível. E como narrativas de similaridades anteriores, como por exemplo a Atlântida, evocam. Talvez por isso a nossa dificuldade em imaginar muito mais, muito diferente daquilo que já existe, mas apenas a ampliação lógica do que conhecemos. Talvez, para além desta possível explicação, a mensagem contida seja a de que o gérmen do futuro está no presente e é aqui que podemos agir, sem esperar pelos cenários apocalípticos garantidos se não o fizermos.

A aparente secura da linguagem pode surpreender o leitor que conheça a sua poesia e o requinte da expressão. Aqui, estamos perante um certamente deliberado exercício de despojamento, que já por si é máscara. Mas que faz parte do cenário desolado e desolador do «território», um deserto sem o encanto do deserto. Máscara da maquinal indiferença. As histórias são impecavelmente arquitectadas, a tecnologia é muito pensada e serve-se fria.

Este livro coloca-nos perante a circularidade vazia dos tentáculos de controlo, como é o caso do segundo conto, «Estás livre no sábado?». Ou de como o combate ao poder pode assumir assustadoras formas espelho, ou como costuma dizer-se, venha o diabo e escolha. Alguém ignora esta realidade, que não só é do presente, mas também do passado? Para não irmos mais longe nem sairmos do nosso país, recordemos o preço que tivemos de pagar para que os nossos «amigos» ingleses nos «defendessem» dos franceses, mas exemplos por essa Europa, por esse mundo fora, não faltam. Será esta, então, uma ficção científica muito bem ancorada nas experiências do passado.

E «O inspector» bonzinho também não nos é estranho, conhecemos vários no passado, por isso ele se multiplica… em cada um de nós. Os arquétipos não são apanágio de apenas alguns.

O conto «Os Monocilistas» poderá ser considerado um estudo, em forma narrativa, sobre a psicologia do tirano e a sua verdadeira dimensão de assustador pequeno tigre de papel. Ou de como na base de um sistema repressivo está, normalmente, uma figura ferida, um profundo medo, um insuportável complexo de inferioridade de alguém, uma vontade de nivelar por baixo, ainda que aparentemente elevando, para que as diferenças se esbatam, para que o que parecia em baixo pareça agora mais acima, ainda que nada disto seja verdade.

É um livro inquietante, em crescendo. Uma sátira mais amarga do que sorridente. Fica o leitor preso ao poder da ficção, com medo de que esta possa dar ideias. E fica o leitor receando que a ficção possa ter o poder de criar, e não apenas antecipar, a realidade. Mas não há que temer o poder criador da ficção, já que ela recria, sob a forma de metáfora, o que já é realidade. A criar será, futuramente, o verbo iluminado pela liberdade, pela equanimidade e pela fraternidade. O diagnóstico que este livro apresenta está feito na sua forma perfeita. Falta agora a esta humanidade, aos seus médicos poetas, escritores, artistas, pensadores, a invenção de um probiótico que a salve de si mesma.

Mas regressemos à problematização do género sátira.

Etimologicamente, satura significa repleto, basta lembrarmo-nos da expressão solução saturada. Usei há pouco, a propósito deste livro, a expressão «a chegar a um ponto de saturação» em relação à nossa capacidade humana actual para suportar mais tecnologia.

Existe um certo mistério em torno da origem da palavra sátira, mas há uma forte inclinação para que a satura tenha nascido da dança. Uma dança trazida com intenções ritualísticas da Etrúria, com o fim de aplacar os deuses por ocasião de uma peste que terá grassado em Roma em 390 aC. É o caso de hoje. Estamos perante uma peste. Não dos corpos, mas das almas.

Terá esta escrita como intenção aplacar os deuses cibernéticos, economistas, financeiros, inventores, cientistas, governantes, chefes… nós mesmos?

A harmoniosa dança dos talentosos bailarinos etruscos terá agradado tanto aos jovens romanos, que passaram a reproduzi-la, embora nem sempre com graça e elegância, o que levou a que os dançarinos romanos introduzissem, nestas danças, versos rudimentares onde satirizavam os mais desajeitados ou ridículos de entre eles. Esta sátira rudimentar continha um carácter jocoso, vexatório e grosseiro que, segundo Agostinho da Silva, que sobre isto escreve a propósito dos vasos etruscos e das bailarinas de Tânagra, era particular apanágio dos romanos.

Esta escrita de Os Monociclistas não é jocosa, mas de uma frieza cirúrgica, não é grosseira, mas de um rigor implacável, não é vexatória, pois não se dirige e ninguém em particular, a não ser que cada um de nós assuma a sua particular responsabilidade pelos cenários (ou situações, como muito bem disse o filósofo João Ferreira como comentário final numa das apresentações).

De qualquer modo, para além desta sátira original onde os dançarinos se dirigiam comentários chocarreiros e inventariavam defeitos mútuos, físicos e morais, de onde derivou a sátira moralista, os romanos cultivaram também a sátira didáctica, que apresenta alguns pontos de contacto com esta sátira de António Ladeira, e tem um parentesco mais claro com a literatura grega.

Aquela sátira originalmente romana acaba por adquirir um carácter moral, por se ter tornado uma sátira de costumes envolvendo aspectos sociais e já não pessoais; sendo até pela não personalização que ela vem a distinguir-se. É também o caso deste livro. O que torna ambígua a sua classificação é o facto de, aparentemente, se projectar no futuro. Como é que se critica o que ainda não aconteceu? E no entanto…

Por outro lado, o modo dialogado que lhe vem da sua origem e que se encontra presente em alguns contos torna-a, por vezes, numa curta comédia melancólica.

Horácio será o representante e herdeiro mais significativo desta «satura» original, que embora viva, não continha ainda o insulto que vamos encontrar posteriormente em alguns autores. Tem ainda a elegância da dança que lhe esteve na origem. É essa mesma elegância que encontramos em Os Monociclistas. E apesar da natureza ficcional do texto, não tenho a certeza de que aqui a ficção não esteja ao serviço do ensaio, melhor dizendo, de uma tese: a de que a tecnologia associada àquilo que de pior existe no ser humano conduz, fatalmente, ao acentuar cada vez maior da exploração do humano, da alienação da consciência e da liberdade, da escravidão no seu pior. Pior, milhões de vezes pior do que aconteceu na história passada. Porque não parece ser reversível, ao contrário da escravidão de que a história fala, passível, como vimos, de gloriosa luta, mesmo nas perdas.

É pela dança que nasce a «satura», é pela dança, que associo à liberdade, que acredito na reabilitação da comédia humana: pela criação de uma espécie de comédia ritualística, ança sagrada e litúrgica. Onde a liberdade social, científica, económica e mesmo cultural não se afaste do respeito pelo humano, num ritual de reunião do ser humano com a natureza, um regresso à natureza através das danças de Dionísio.

[Texto: Risoleta C. Pinto Pedro]