Histórias de um Algarve surreal

Texto da escritora Maria João Cantinho,  lido na apresentação do livro «Uma visita aos algarves – e outros contos do sul», de António Manuel Venda (ed. On y va), em Lisboa (Universidade Lusófona/ ISG), a 14 de Abril de 2018

 

António Manuel Venda nasceu em Monchique, no Algarve, em 1968. É licenciado em Gestão de Empresas e pós-graduado em Marketing e em Mercados Financeiros. Desde muito jovem que escreve, tendo publicado contos, crónicas e artigos em jornais e revistas.

Em 1989, foi-lhe atribuído o Prémio Literatura na Universidade, do Instituto Abel Salazar, na cidade do Porto. No ano seguinte, no âmbito do Programa Cultura e Desenvolvimento, recebeu o Prémio de Literatura da Secretaria de Estado da Cultura e da Sociedade Portuguesa de Autores. Ainda em 1990, foi-lhe atribuído o Prémio DN Jovem «Descobrimentos Portugueses», que a Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses nunca lhe entregou. Foi ainda distinguido com o Prémio Revelação Inasset, do Centro Nacional de Cultura, em 1991, e com o Prémio Literário Cidade de Almada, em 1996, e a partir daí nunca mais sossegou, pois a escrita está-lhe no sangue, como se pode ver pela forma como encanta os leitores e é por ela encantado.

Numa nota final do autor, este esclarece-nos sobre as quatro histórias de Uma visita aos algarves e outros contos do sul, escritas em tempos diferentes, e que formam um conjunto resultante de circunstâncias diversas. Tal nota adverte-nos para a coerência do percurso da sua obra. Uma força pulsional e singular perpassa estas histórias, que encontram na fusão entre o quotidiano e o fantástico a sua matriz. Herdeiro do realismo mágico, António Manuel Venda faz-nos saltar imediatamente do plano do quotidiano, arrastando-nos para uma visão mágica e lúdica da realidade. Não confundamos, no entanto, este lúdico com uma qualquer dimensão da literatura infantil. Ele emerge da ironia, no confronto com as situações de absurdo vivenciadas pelo narrador. E a dimensão de absurdo não tem aqui uma dimensão filosófica, como acontece no teatro do início do século XX, tomando o exemplo de Beckett ou nos romances de Camus, os quais nos trazem uma dimensão atormentada do Homem, mas também um outro modo de olhar a realidade, questionando-a, vincando a ironia como dimensão essencial e como antídoto do pessimismo, sacudindo a continuidade do real, do tempo e do espaço da narrativa.

No primeiro conto, Os romanos, o narrador, também escritor, conduz, perdido nos seus pensamentos, oferecendo-nos o seu solilóquio, deparando-se subitamente com um barco no Rio Guadiana cheio de romanos. O pobre escritor, perturbado, não apenas pelo calor, como também um pouco assustado com a comunicação que iria fazer, vê-se no meio de uma situação surreal, como se tivesse mergulhado no passado. Pondera numa série de explicações para tentar justificar o que está a ver, e toda a história se passa, assim, na sua cabeça, mergulhado nas suas perplexidades. Essa trepidação imaginativa é uma espécie de compasso rítmico que acompanha a nossa leitura. De facto, se pudéssemos caracterizar a escrita de António Manuel Venda e uma determinada linha de coerência, poderíamos identificar essa escrita como uma montagem a partir de uma determinada hipótese ou possibilidade, que lhe imprime a dinâmica e a direcção.

Pelo meio, interrompendo o hilariante cenário, irrompe a realidade, ela própria bizarra, como a polícia a falar em inglês. Imediatamente compreendemos nessa interrupção um novo corte. E depois voltamos vertiginosamente à imaginação desenfreada do escritor. E novamente à hipótese do barco romano. Esta intersecção, ou a sobreposição de planos, como queiramos chamar-lhe, aparenta-se bastante com a técnica da montagem cinematográfica, sobrepondo tempos diferentes no mesmo espaço, numa justaposição de planos. Porém, o narrador nunca perde o pé, no sentido em que nos faz saltar de uma cena para outra, com a mestria do realizador.

A segunda história, ou o segundo conto, de 2012, Corta-cabeças, é sobre Geraldo Geraldes, a mítica personagem histórica conhecida como «O Sem Pavor» ou, ainda, o «Corta-cabeças». Partindo da visão da sua estátua em Évora, que lhe serve de inspiração, vemos novamente o pobre escritor embrenhado nos seus próprios pesadelos.

Os outros contos são clara e assumidamente fantásticos, já que as datas em que o autor os situa sãoé respectivamente 2026 e 2051. Intitulam-se A breve governação dos baixinhos e Uma visita aos algarves.

Usando situações de humor fino para explorar situações do quotidiano, como a do presidente que cheirava mal, o que as televisões não deixavam ver, a estranheza entre a figura mediatizada e asséptica do presidente e a sua presença física, a discussão acerca da democracia e a insistência em normatizar um escritor que não é «dos nossos», contra a própria vontade do escritor, reflectem situações de exaspero do narrador/ escritor diante da democracia, na parte final do conto, fazendo-nos rir pela convocação do absurdo. Com os trocadilhos entre ambos, presidente e escritor, pela imposição, nada democrática, de mostrar a tolerância do democrático presidente, mesmo que isso constitua uma imposição ao escritor: «Tem de escrever!!»

A história de 2051 é sobre um Prémio Nobel, insinuada logo na primeira página como sendo, talvez, um amigo do próprio autor num tempo futuro: «… o velho escritor que tinha arrebanhado o Prémio Nobel com a publicação do sétimo volume da saga de um portuguesinho aventureiro de vidas medievais chegou a Monchique acompanhado por uma jovem artista chamada Madalena.» O imbróglio entre um corcunda, que procurei identificar sem sucesso (porque nada é aqui ao acaso, nestes contos, ressumando uma crítica fina e mordaz, por vezes política, como é o caso do terceiro conto), e o nobel e a rapariga jovem, artista da Batalha, as histórias que se atravessam no caminho destas, se entrecruzam e nos deliciam, como «a bala que sai pelo nariz» e viaja pela cabeça (quem senão António Manuel Venda para imaginar uma situação destas?), a personagem Maria Cadela, ainda hoje igual (fisicamente) à figura do passado, algo manifestamente impossível.

Ressalto essa capacidade extraordinária de António Manuel Venda de fazer saltar as cadeias do tempo pela liberdade imaginativa, surpreendendo-nos com as suas imagens, situadas nesse limbo entre fantástico e real, modo inédito de, através de uma escrita rica e colorida, se situar no interior da metáfora e dela partir como possibilidade de reinvenção literária, provocadora, desconstrutiva, mas igualmente despretensiosa como um jogo infantil.

A linguagem escorreita e cuidada com que nos conduz através das situações, pela mão de um narrador múltiplo, nos espaços e nos tempos, revela-nos as angústias do homem enquanto escritor, as suas inseguranças, os seus medos, mas transforma essas angústias em hipérboles e em matéria literária capaz de nos encantar.

A ingenuidade destes contos, se a houver, não é senão aparente, modo de nos dar um mundo, ele próprio absurdo. Se existe uma escrita em que ele aflora, ele não é senão resultante de um acto de hiperbolização da realidade, como algo intensificando-se a partir do quotidiano, como o barco romano observado no Guadiana ganhando uma vida autónoma e contando a sua própria história, ou a estátua de Geraldo tomando vida e revelando-se na sua força, e não apenas nessa imortalidade de pedra a que nos habituámos.

Não sei se cometo uma heresia em descortinar aqui um filão borgesiano, onde o tema do duplo é uma constante, como por exemplo no último conto, em que está muito presente, lembrando-me o conto Borges e eu, nesse diálogo entre o novo e o velho. Ou Gabriel García Márquez, em que o maravilhoso se cruza com o quotidiano, talvez porque a realidade seja, ela própria, demasiado austera para dela não retirarmos a capacidade de a sonhar enquanto matéria primeira. Daí o meu espanto, a minha surpresa e a minha alegria pela leitura de António Manuel Venda, a minha admiração pela singularidade da sua voz, passando entre os pingos da chuva, entre tanta literatura presa ao real e pouco ousada na arte da efabulação. O autor pertence essencialmente a essa linhagem da literatura universal intensificada pela capacidade de efabular, metamorfoseando o real, tomando a metáfora como matéria literária por excelência. E é dela, da efabulação, que escorre essa alegria contagiante, contaminando-nos no acto de leitura, agarrando-nos essencialmente pela ironia, não nos deixando esquecer que é precisamente a ironia uma das mais aceradas lâminas da literatura.

[Texto: Maria João Cantinho]