Em Sines

Texto de Fernando Venâncio, para a apresentação do livro «Os Monociclistas e outras histórias do ano 2045», de António Ladeira (ed. On y va), em Sines (livraria A Das Artes), a 15 de Março de 2018

 

Neste livro de António Ladeira, «Os Monociclistas e outras histórias do ano 2045», somos transportados a um futuro. E, como futuro decente que é, não se deixa facilmente agarrar. Estamos num tempo pouco determinado, e estamos num espaço menos determinado ainda.

2045 é um ano claro, e fiável, mas há, aqui, histórias que acontecem antes, ou pelo menos mostram um razoável recuo temporal relativamente àquele ano. E quanto ao espaço, as coisas são mais simples ainda: não sabemos onde estamos e onde as cenas decorrem.

Neste particular, não raro nos confrontamos, durante a leitura, com cenários que se diria saramaguianos. Estamos num tempo sem tempo, algures no Planeta, esse algures poderia ser até Portugal, mas é certamente um sítio fantasmagórico. Não achamos nomes de cidades, nomes de países, e os nomes de personagens nenhuma certeza oferecem. Encontramo-nos num espaço físico globalmente denominado «o Território» e sabemos que existem também coisas «extra-territoriais». Parece, de facto, estarmos naquele universo em que também Saramago se moveu. Nele, as categorias de tempo e de espaço perdem praticamente qualquer referência.

Encontramo-nos, sim, em pleno ambiente de futuro ficcionado como o conhecemos de filmes, por exemplo. E, como nos filmes, esse futuro é pouco aconchegante, e é antes sombrio, semeado de situações perigosas, e desumano ao ponto de ter desaparecido o mínimo conforto de privacidade. Um Poder sem rosto tomou conta de tudo, e esse Poder é inexorável. Imperam o irracional e o arbitrário, reinam ameaças de todo o tipo.

Tudo isto é nítido em contos como «O inspector» ou «O contrato», onde vemos encenado um autêntico terror, mesmo quando as suas vítimas parecem entregar-se, rendidas, a uma terrível desdita. Mas a fundamental falta de liberdade está presente em bastantes das outras narrativas. Até um arejado e altamente ecológico «monociclo» acaba por tornar-se um destino inescapável. Dotado de giroscópios perfeitos, o monociclo não cai nem deixa cair. Assim o diz o narrador do conto «Os Monociclistas», falando ao cão José, e num momento em que o monociclo se tornou o único meio de transporte permitido: «Sobe à plataforma, vá. E não te preocupes: ninguém cai do monociclo. Ninguém escapa ao monociclo.»

A humanidade aparece, assim, marcialmente uniformizada, digamos tudo, bestializada. O discurso dos maiores pessimistas actuais acha-se, agora, finalmente materializado.

A menos que o Mundo sofra entretanto graves cataclismos, não é preciso ser grande profeta para ter a certeza de que alguns dos aqui presentes estarão vivos, e mesmo vivíssimos, em 2045. Já só faltam 27 anos, e eles passam num sopro… Mas aí está também o problema, digamos, estrutural: os anos passam num sopro, e nós com eles.

Certo é que as estatísticas jogam a favor de alguns, e esperemos que muitos, dos presentes. E eles poderão, nessa altura, verificar se o mundo descrito por António Ladeira neste livro bate certo com a realidade então constatável. Mas, pobres de nós, uma coisa tem de ser dita: caso o mundo aqui descrito se tiver tornado real, não restará ninguém para no-lo reportar. Naquele contexto de completa desumanização, a própria constatação desse estado de coisas há-de ter-se tornado, para os poucos ainda lúcidos, um autêntico risco de vida.

Mas é realmente isso o que nos espera? Esse futuro ameaçador, violento, desumano? Esse tempo em que, bem vistas as coisas, seria preferível não estar vivo?

Eu tenho as minhas dúvidas, dúvidas que bem gostaria de poder um dia ver desfeitas… mas isso não interessa agora. Pois bem, e por estranho que pareça, essas dúvidas são um elogio ao nosso autor. Vou contar-vos um caso real e histórico.

Júlio Verne, o grande criador de ficções científicas de finais do século XIX, escreveu, certo dia, um conto com o cenário seguinte. Há uma sala, imensa ‒ redonda ou elíptica, já não recordo ‒, em que trabalham quinhentas telefonistas. A tarefa delas é, o dia inteiro, transmitir as últimas notícias francesas e estrangeiras a outros tantos assinantes de um, digamos, jornal falado. Sabemos que o telefone estava entretanto inventado, e lembramo-nos daquele telefone que serve em Paris o rico protagonista de «A Cidade e as Serras», de Eça… E que faz Júlio Verne? Descreve um futuro, decerto ainda distante, em que é pelo telefone que as notícias, eficientemente, são divulgadas. Júlio Verne morreu sem saber que, uns tempos depois, seria inventado o rádio. Só que ele não tinha meios de sequer imaginar que o rádio viria. Tudo o que podia fazer era extrapolar o presente. Um telefone, quinhentas telefonistas.

Assim são as coisas. Os saltos tecnológicos do futuro, aqueles que marcarão a realidade daqui a 27 anos, estão-nos mentalmente vedados.

E que faz, então, no meio de tudo isto, o António Ladeira? Ele faz o que pode, e não é pouco, extrapolando sistematicamente dados do mundo que nos rodeia. E, se isso cria um mundo sombrio e ameaçador, é porque são projectados no futuro os nossos medos actuais.

Sim, o medo de que as nossas comunicações privadas, mesmo telefónicas, sejam em tempo real criticamente acompanhadas por instâncias todo-poderosas: é o tema do conto «Estás livre no sábado?». O medo de publicarmos nas redes sociais algo comprometedor que um dia venha tramar-nos, e sejamos acusados de transgressões que nem por sonhos supúnhamos ter cometido: é o tema do conto «Galeria», uma magnífica paródia ao Facebook e plataformas do tipo. O medo de ficarmos reféns de gadgets e suas infinitas marcas e modelos: é o tema do conto «O Complexo», uma charge à Apple (ou à Amazon), tornada empregadora da humanidade inteira. Ou, ainda, medo de que a escrita à mão deixe de praticar-se, situação encenada logo no primeiro conto, «O professor», com este apontamento hilariante:

 

[pág.15] Não era fácil ler livros em papel. Era necessário virar a página manualmente. «Virar a página» significava segurar o canto da folha entre o dedo indicador e o dedo polegar, com muito cuidado, e transferir cada página da pilha da direita para a pilha que se vai formando à esquerda.

 

O grande mérito de António Ladeira é, está visto, que ele assume esse singelo extrapolar das realidades de hoje, não tentando sugerir um mundo irreconhecível. Nesse sentido (e eu peço aos sobreviventes daqui a 27 anos que o confiram), António Ladeira não está a falar de um mundo de 2045, ele está a falar de nós em 2018. De nós. O grande conseguimento deste livro, repito, é desenhar uma continuidade, recusando-se a adivinhar o que não pode ser adivinhado.

Esse procedimento por extrapolação consegue construir excelentes caricaturas do mundo dos nossos dias. Já hoje, é sabido, o sistema de um smartphone nos sugere sempre uma palavra seguinte. Pois bem, isso ainda não é nada. Apreciemos a cena futura.

 

[pág. 108] Consideremos dois amigos. Chamemos-lhes amigo A e amigo B. O amigo A telefona habitualmente ao amigo B na sexta-feira à noite para combinarem uma saída no sábado. Ora, com um TAF 35, quando o amigo A disser «Olá Jeff, queria saber se…» o sistema assume o controlo e completa a frase iniciada: «…queres sair no sábado?»  Entretanto, o amigo B, em vez de responder ao convite, deixa que o SRR responda por ele: «Claro, combinado.» Como se vê, com uma intervenção mínima por parte do iniciador da chamada, e sem qualquer intervenção do receptor, acaba de marcar-se um encontro. Teoricamente, os programas SCP e SRR permitem que se mantenha longas e até complexas conversas, oralmente ou por escrito, sem a participação de nenhum dos interlocutores, que podem aproveitar para se dedicarem a outra actividade enquanto os telefones falam sozinhos.

 

Sem dúvida, um sistema tão intrometido acaba por revelar certas limitações. É o que vemos no primeiro conto, «O professor».

 

[pág. 21] O professor disse que já tinha sido escritor e que não tinha gostado. (Hoje percebo que o que ele tinha sido não era bem «escritor»). O professor disse que uma vez tinha escrito o seguinte: «Um rapaz bateu com a cabeça num muro e a cabeça separou-se em duas metades iguais, como as duas metades de uma laranja.» O programa não aceitou aquilo. O professor justificou a frase o melhor que pôde, mas o programa continuou a impedir que a frase permanecesse escrita. O professor resolveu «accionar todos os mecanismos necessários para defender o que tinha escrito» e pediu uma entrevista com um editor automático mais sofisticado. Teve sorte, e em vez de um editor automático mais sofisticado, a editora permitiu-lhe conversar com um editor de carne e osso. Esse editor de carne e osso rejeitou a frase ainda mais depressa do que tinham feito os programas automáticos. O professor não desanimou e resolveu submeter a mesma frase aos programas de edição automática de outras editoras. As editoras de literatura realista rejeitaram a frase sem qualquer explicação. As de literatura infantil diziam que a frase não era suficientemente infantil. As de literatura de terror diziam que a frase não era suficientemente aterrorizante. As de literatura fantástica diziam que a frase não era suficientemente fantástica. As de literatura séria diziam que a frase não era suficientemente séria. E as editoras de livros cómicos e absurdos diziam que a frase não era suficientemente cómica nem absurda.

 

A escrita de António Ladeira é imensamente agradável. Sendo límpida e correntia, ela entrega-se, não raro, aos requintados prazeres da narração «ingénua», que tem em Portugal alguma boa tradição. Foi cultivada por Almada-Negreiros e continua viva em Mário de Carvalho. É uma narração essencialmente falada, e mostra-o sobretudo na liberdade de repetição, que tanto repugna à estética que manda sempre «variar». Dou-vos um exemplo, também do primeiro conto.

 

[págs. 18-19] Levantei a mão e perguntei se podia voltar no dia seguinte para aprender a ser escritor. É que eu – como já tinha anunciado à turma – queria ser escritor. O professor disse que eu ainda não podia ser escritor. O inspector escolar tinha interrompido o ano lectivo antes de ser dada a lição onde se ensinava a ser escritor.

 

Meus senhores e amigos: é um prazer apresentar um livro assim. De António Ladeira podemos esperar livros deliciosos, imensamente inteligentes, suscitando o melhor no seu leitor. E tem de saudar-se um editor que nos assegura, e promete continuar a assegurar, estes momentos de felicidade.

[Texto: Fernando Venâncio]