Tentações

Na casa em que cresci, como na maioria das casas da minha aldeia, não havia muito espaço para guloseimas. Comida, sim, sem desperdício, e igual para todos, comida para gente de trabalho, comida que a terra nos dava, a terra das terras que amanhávamos.

Tínhamos de tudo, batatas, feijões, couves, grelos, nabos, cebolas e alhos, e alfaces e tomates, e pepinos e abóboras, e milho com fartura que o moleiro levava e trazia quatro ou cinco dias depois convertido em farinha, retirada a maquia, e que quinzenalmente pelas mãos milagrosas da minha avó ou da minha mãe, ou de ambas, se transformava em broa alta e em bolas (bôlas) achatadas. E tínhamos videiras e laranjeiras e tangerineiras (de tângeras e tangerinas) e pereiras e macieiras e ameixieiras (ah, como sabia bem dizermos ameixieiras!) e limoeiros. E também, como nossas, uma nespereira e uma nogueira e uma romãzeira dos vizinhos. Tínhamos tudo o que enchia os pratos ao almoço, ao jantar e à ceia. E também tínhamos o conduto, carne de porcos cevados à custa de uns bons baldes de lavagem e mortos aos pares no frio de dezembro, bichos para cima de três arrobas que depois de chamuscados e desmanchados eram acamados com delicadeza geométrica na salgadeira grande da adega. Aos domingos podia haver galinha caseira ou coelho escapado da moléstia ou bifinhos de vaca comprados no talho, ou mesmo, em pleno agosto, umas postas de cabra exigidas pela padroeira ao som dos dinos meiras. E peixe, à noite sempre peixe, que por não puxar à carroça se chuchava invariavelmente à ceia embebido em azeite e vinagre.

Havia comida, portanto, e crescíamos fortes.

Só não havia lambarices. Quiçá uma vez por outra, com parcimónia. Mas rebuçados dos bons e dos caros, que sabíamos existir, quase nunca. Só uma vez por ano, na natividade, quando parentes da capital nos presenteavam com iguarias e bombons chiques da Confeitaria Nacional. Cada pedaço daqueles enchia-nos a boca, ao meu irmão e a mim, e tinha o sabor da plenitude. Efémera. Fora isso, para adoçar a míngua, surripiávamos espaçadamente e com engenho no quarto dos meus avós, numa das mesinhas de cabeceira, uns rebuçados especiais que por lá se delongavam avulsos. Uns, da Fábrica Águia, do santo advogado das doenças da garganta, um tal S. Braz, retorcidos em papel fino, esverdeado e lindo. Os outros, peitorais de requinte ao serviço da tosse e da avidez, do Dr. Bayard, em folhinha delicada de porcelana, atrativa e provocadora. O meu avô nunca soube disto, ou soube e fingiu compreender a tentação. Mas não chegou a saber que os rebuçados de hoje já não sabem a nada nem têm crianças que os procurem ou que os saibam descascar como segredos.

Já lá vão muitos anos, uma eternidade, e é tudo tão perto e tão amargo…

[Texto: António Souto]

23.05.17
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