África

Há algum tempo, um responsável de uma empresa portuguesa encarregue da construção do corredor ferroviário de Nacala (Moçambique) relatava que a dado passo da obra era necessário abater um conjunto de árvores entre as quais se encontrava um embondeiro sagrado de uma aldeia próxima. Sob pena de alteração ao trajecto inicialmente definido, só após longas conversações com o chefe da aldeia foi possível que este convencesse o feiticeiro a transferir o poder para uma outra árvore e desse modo manter o projecto inicial. O responsável da empresa concluía ao falar deste episódio estarmos diante do que ele chamou «TIA – This is Africa» («Estamos em África!»).

Também eu quando passei pela gestão dos recursos humanos da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, em Moçambique, me deparei com o fenómeno «TIA». A empresa tinha ao seu serviço dois médicos contratados em Portugal para prestarem assistência médica aos seus trabalhadores nacionais e expatriados. Ora, acontecia frequentemente que trabalhadores moçambicanos abandonavam as consultas e os tratamentos ministrados pelos médicos portugueses, deslocando-se às suas aldeais natais, situadas nalguns casos a muitas centenas de quilómetros, para serem curados pelos feiticeiros tradicionais, ausentando-se do trabalho sem justificação e excedendo o número de faltas constante dos regulamentos.

O que fazer perante esta situação? Simplesmente compreender o «estamos em África», aceitar como natural na cultura africana esta preferência de cura pelos feiticeiros tradicionais(1) em detrimento de procurar os médicos, relevar as faltas dadas pelos trabalhadores, evitando assim os custos do recrutamento e da formação de substitutos, sem garantia de que estes últimos não viessem a seguir o mesmo procedimento.

Recuando muitos anos, quando na década de 1960 era estudante liceal em Moçambique, já o «TIA» se tinha cruzado na minha vida, numa história divertida que intitulo de «Xicuembo do Tua». Jogava então futebol na equipa júnior do clube da minha terra natal, o Sports Clube de Vila Pery, que num certo domingo se deslocou à Beira para defrontar, no campeonato júnior da Associação Distrital de Futebol de Manica e Sofala, o Sporting da Beira, em cujo equipa pontificava um jogador que viria a transferir-se para o Sporting Clube de Portugal no final da época: o Manaca.

Estava em perspectiva uma derrota, já que o Sporting da Beira era líder invicto da prova. Só que quando estávamos na cabina para nos equiparmos, o Tua, um dos jogadores negros do dream team da minha juventude, revelou o que era uma autêntica surpresa: íamos ganhar o jogo, pois ele tinha preparado um xicuembo (feitiço, na língua nativa dos povos do centro de Moçambique) para o efeito. Desconfiados, ainda assim lá nos deixámos submeter aos feitiços do Tua: ou seja, lavámos a cara com uma mistela branca, que ainda hoje estou para saber de que era feita, e entrámos em campo cada um com uma das mãos cheia de algo que me pareceu farinha com sal; era para espalharmos junto de cada uma das áreas das balizas, os avançados e os médios para marcarem golos e os defesas e o guarda-redes para os evitarem.

O resultado final do xicuembo do Tua foi desastroso: uma derrota copiosa por sete a um, com cinco golos do Manaca e um banho de futebol de todo o tamanho.

Na cabina, no final do jogo, desatámos a rir à gargalhada, e depois confrontámos o Tua com o facto de o feitiço não ter surtido efeito. Ele manteve sempre um ar sério e reservado.

Hoje, a esta distância, penso que o Tua, como africano, estava plenamente convencido daquilo que nos tinha proposto. E que aquela postura enquanto o confrontávamos resultava apenas de estar à procura de explicações para o falhanço do seu xicuembo.

O que retirar do relato destas histórias?

Creio que o fenómeno «TIA», consubstanciado na existência de factores culturais inerentes às sociedades africanas tradicionais, não pode ainda hoje em África ser ignorado pelos gestores, designadamente os que lidam com pessoas, sob pena de não alcançarem os objectivos pretendidos.

[Texto: Carlos Antunes]

(1)Sobre os instrumentos dos curandeiros de Moçambique, vale a pena ver a exposição «Plantas e Povos», actualmente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Muhnac), em Lisboa, na qual se encontra exposta uma fotografia a preto e branco do curandeiro Artur Murimo Mafumo, que em Dezembro de 1955 foi preso. Os seus instrumentos de culto e adivinhação, como ossículos adivinhatórios, foram apreendidos e trazidos para Portugal por Joaquim Santos Júnior, no âmbito de uma expedição científica da Missão Antropológica de Moçambique.
25.05.17
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